terça-feira, 26 de novembro de 2013

CRÍTICA DE SARTRE AO MATERIALISMO MARXISTA - RAYMOND ARON




Gostaria, portanto, de recordar os têrmos principais da crítica do materialismo por Sartre e, em seguida, mostrar em que sentido o existencialismo se apresenta ao marxismo como a filosofia capaz de o fundar. 

No que se refere à crítica do materialismo, serei breve, pois se trata de idéias clássicas; Sartre enfrenta intérpretes do marxismo, porta-vozes do partido. Os temas principais da crítica do materialismo por Sartre parecem-me, mais ou menos, os seguintes: 

1) É impossível explicar a consciência como se esta fosse um objeto entre os objetos, tal como o faz o materialismo vulgar. Toda explicação da consciência por algo exterior a ela cai numa contradição, já que tal explicação pressupõe o que pretende explicar. Se a consciência é assimilada a um objeto entre os objetos, reduzir-se-á o pensamento a um reflexo ou a um efeito e não se poderá compreender como um objeto parcial "decola" do mundo dos objetos, como pode chegar a refletir o conjunto dos objetos ou a captar uma verdade. Chegamos assim a uma primeira afirmação: o materialismo, que se apresenta como negação da consciência ou explicação total da determinação da consciência, refuta-se a si mesmo. Não se pode deixar de colocar, em primeiro lugar, o cogito ou a subjetividade. 

2) As exposições correntes do materialismo marxista apresentam uma confusão constante e quase inextricável entre o cientificismo ou positivismo, o racionalismo e o materialismo. Os materialistas marxistas declaram que rejeitam qualquer metafísica e que conservam simplesmente os resultados da ciência enquanto tais; mas os resultados da ciência, por si mesmos, não demonstram e jamais demonstrarão o materialismo. A afirmação de que só existe uma única realidade, a realidade material, é essencialmente metafísica e ultrapassa tanto os resultados da ciência quanto, as afirmações idealistas. Por outro lado, se nos atemos aos resultados da ciência, pura e simplesmente, se recusamos transcendê-los, então com que direito podemos proclamar a racionalidade essencial da natureza e da história? Assim, os marxistas-leninistas misturam as três teses — positivista, materialista e racionalista — quando não passam confusamente de uma para outra. Tese positiva: é preciso aceitar as ciências como são, agrupá-las e organizá-las; tese metafísica: afirmação de que tão somente a matéria existe ou que o mundo exterior existe tal como o vemos ou como a ciência o analisa; tese da racionalidade intrínseca ao objeto, que os marxistas tentam conservar, embora lhe tenham suprimido os fundamentos. 

3) Terceiro argumento, provavelmente decisivo. Há contradição entre as noções de materialismo e de dialética. Sartre retorna inúmeras vezes a este ponto. Inicialmente, coloca a diferença radical entre as relações puramente exteriores dos objetos no espaço ou, de modo geral, as relações de exterioridade espacial e o movimento dialético. Em essência, este último é um movimento de idéias; implica em síntese e totalidade, em superação que transcende e conserva ao mesmo tempo o estado anterior, em uma espécie de apêlo do futuro ou, ainda, em uma tendência da totalidade a realizar-se. A dialética, assim definida, revela-se imediatamente inconciliável com a ordem das relações espaciais e materiais às quais se pretende reduzi-Ia. Sartre — pretendendo apresentar um exemplo desta antinomia — toma o caso da superestrutura ideológica e mostra como, nas explicações materialistas, se passa sucessivamente de uma explicação determinista simples (a idéia como efeito ou reflexo de uma certa situação material) a uma outra explicação capaz de conduzir à dialética: a idéia surge numa situação histórica, com o objetivo de responder a necessidades ou de superar um estado dado na direção de um estado a criar. 

Se os dois movimentos, movimento de relações espaciais e movimento de progressão criadora ou dialética, são incompatíveis, a inserção do movimento dialético na matéria supõe uma noção confusa ou contraditória desta última. Os marxistas pretendem, partindo da matéria mais simples, elevar-se às formas complexas da realidade: natureza inorgânica, vida, mundo da história, espírito. Uma tal hierarquia não é certamente ininteligível; mas, se nos atemos à concepção da matéria bruta, elementar, como explicar a progressão do tipo inferior ao tipo superior? 

Isso só é possível se introduzirmos inicialmente, em favor de uma noção contraditória da matéria e de um modo sub-reptício, os termos superiores no termo inicial.

São estes, ràpidamente resumidos, os três pontos essenciais da crítica do materialismo marxista por Sartre. São êstes os argumentos através dos quais pretende justificar sua recusa de aderir a uma doutrina absurda. 

Uma vez afastado o materialismo, Sartre concede que este não se reduz certamente a uma capricho de intelectual. Os revolucionários aderiram à ideologia ou ao mito materialista por razões sérias; mas, diz êle, as necessidades a que o materialismo responde não poderiam ser satisfeitas, e de um modo superior, pelo existencialismo? Coloca-se aqui a segunda parte do diálogo entre Sartre e os marxistas, ou, melhor, do monólogo de Sartre. Estamos diante das ofertas positivas, se assim posso dizer, que êle lhes dirige, de modo pelo qual o existencialismo poderia tornar-se a filosofia da revolução.
 

Extraído do livro "De uma Sagrada Família a Outra: Ensaio Sobre os Marxismos Imaginários"  de Raymond Aron

 
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Um século de Aron – O combatente da liberdade

 
“Os intelectuais radicais não querem compreender nem transformar o mundo, querem denunciá-lo”.
 
Raymond Aron.
 
Raymond Aron nasceu em 14 de março de 1905, em Paris, e é natural que hoje os liberais lembrem-se dele como o grande combatente das liberdades, um dos mais atuantes na França do século passado, país dominado por Sartre, Merleau-Ponty, Lévi-Strauss, entre outros pensadores esquerdistas de peso.
 
A vida de Aron, que completaria 100 anos se estivesse vivo, foi um combate só. De início, homem de esquerda como Sartre, ao lado de quem estudou na Escola Normal Superior, na Rue d´Ulm (Paris), tornou-se, no seu tempo, para além de ativo professor universitário e jornalista, intérprete privilegiado dos fenômenos políticos e sociais à luz de vastos conhecimentos históricos, econômicos e sociológicos. A descrença em relação ao socialismo e, em especial, ao comunismo, levou-o a polêmicas ferozes com representação expressiva da “intelligentzyia” francesa, que nunca o perdoou pelo fato de, entre o culto à União Soviética de Stálin e a defesa dos Estados Unidos, postar-se ao lado dos americanos, chegando mesmo a articular, na ordem prática das coisas, a marcante Aliança Atlântica - uma barreira contra o expansionismo comunista que no pós-guerra dominava metade da Europa e ameaçava tomar o continente inteiro. Pensando em Aron, o amigo de quem se tornou rival, Sartre escreveu: “Todos os anti-comunistas são cães”.
 
Mas Aron conhecia o comunismo de sobra e, a despeito de justificativas criadas nos salões da aristocracia esquerdista, não imputava os males do regime totalitário apenas ao stalinismo. Melhor que ninguém, virou pelo avesso a obra de Marx, a quem dedicou livro minucioso, “O Marxismo de Marx” (Editora Arx, 2004) nela descortinando a sintomatologia do universo concentracionário que acompanha o pensamento (totalizador) do pai do “socialismo cientifico”. O próprio Aron confessa, no prefácio do livro, que atravessou 32 anos de sua vida estudando os escritos de Marx, para chegar a uma conclusão sobre o comunismo: “Creio não haver doutrina tão grandiosa no equívoco, e tão equívoca na grandeza. Foi por isso que a ela dediquei tantas horas...
Ao pensador que viveu precisos 78 anos, nunca faltou a energia e a capacidade de expressar a avaliação do mundo que o cercava. Entre milhares de artigos, depoimentos e entrevistas, escreveu livros fundamentais para a compreensão crítica dos fenômenos sociais e políticos. De fato, em obras como “Introdução à Filosofia da História” (Gallimard, 1938), ensaio contundente sobre problemas teóricos do conhecimento histórico; as “Dezoito Lições sobre a sociedade industrial” (Gallimard, 1962), que traça o perfil positivo da sociedade industrial no Ocidente; o percuciente “Paz e Guerra entre as nações”, estudo sobre a raiz dos conflitos bélicos na democracia e nos sistemas totalitários; o instigante “De uma sagrada família a outra” (Gallimard, 1969), coletânea de ensaios sobre os marxismos imaginários e, sobretudo, em “Plaidoyer pour l`Europe decadente” (Robert Laffont, 1977), livro nunca editado no Brasil, mas que faz a lúcida defesa da civilização ocidental - Raymond Aron justifica plenamente o porquê do antagonismo sartreano e a extraordinária dimensão que atingiu na história do pensamento moderno.
 
No contundente “O Ópio dos Intelectuais” (1955), publicado no Brasil em 1980 pela UnB, escrito antes do degelo do regime socialista, Aron desmonta com precisão de relojoeiro os mitos da esquerda, da revolução e do operariado, desarticulando, com argumentos substanciais, a impostura do que chama “ideocracia” – o despotismo do preconceito ideológico – e, por extensão, a conhecida figura do “ideocrata” – o burocrata possuído por ideologias totalitárias. Neste particular, chega à perfeição traçando o perfil do intelectual que assume o papel de “confidente da providência”, o tipo que se vende como defensor dos dominados e entoa (em nome da “moral histórica” que diz ser portador) loas em torno de um mundo “mais justo e fraterno que virá no futuro” – e para o qual, na prática, nada tece além da pura “festividade”.
 
O solitário Aron - que repudiou o marxismo existencialista/irracional de Sartre e o “sintomalismo” de Althusser (o homem da “teoria lacunar”, que lia os “silêncios” de Marx) -, a despeito de admitir o contrário, representou muito mais do que mero “espectador engajado” (como chegou a auto-definir-se numa série de entrevistas que fez para a televisão e ensejou livro com o mesmo título de Jean-Louis Missika e Dominique Wolton, publicado pela Nova Fronteira, em 1982). Na realidade, além de bom combatente liberal, ele ajudou a entender como nenhum outro pensador europeu o problemático século 20 – com destaque, em retrospecto, para temas como a França dos anos 30, a segunda grande guerra, a guerra fria, a descolonização, o degelo soviético, a era da “coexistência pacífica”, a guerra do Vietnã, o maio de 68 – aprofundando a reflexão sobre a contradição existente entre liberdade e igualdade – sem jamais deixar de assinalar, sempre com ironia, que o império soviético, ambicionando as duas coisas, excluiu a liberdade sem ao menos “sintonizar” a igualdade. De fato, mais do que testemunha, Aron atuou firmemente no campo da discussão das idéias, na análise da evolução do pensamento contemporâneo e na reflexão dos grandes acontecimentos do seu tempo.
 
Como arauto da liberdade, o autor de “Histoire et dialetique de la Violence” encontrou na filosofia liberal “o sistema de valores que podia estruturar um modelo de ação”. Para ele, o liberalismo, respeitando o pluralismo das idéias e privilegiando o empirismo na análise e na ação, representa ainda o sistema “menos mau” para orientar o exercício da política. De resto, o pensador de origem judaica considerava que a atividade política não representa obrigatoriamente a luta entre o bem e o mal mas, sim, a escolha entre o “preferível e o detestável”. Pessoalmente, como liberal convicto, procurou mobilizar a crença na força da iniciativa individual, na livre concorrência e na importância da sociedade industrial - esta, como se sabe, permanentemente satanizada pelos fetichistas da “alienação”, a idéia proposta por Marx, exaustivamente explorada pela Escola de Frankfurt.
No seu livro mais cativante, “Memó ;rias” (Nova Fronteira, 1986) , publicado pouco antes de morrer, de leitura obrigatória para quem deseje vislumbrar com objetividade os principais acontecimentos do século XX, Aron confessa a grande influência que recebeu do pensamento alemão, em especial do historicismo de Max Weber, o sociólogo para quem o cientista social deve distinguir com rigor “aquilo que é do que deveria ser”, afirmando, como corolário, que nenhuma compreensão histórica e social está completa se não incluir a dimensão religiosa, política e moral dos agentes humanos.
 
Neste particular, embora “movido” pelo conceito da neutralidade que Weber considera preponderante para o alcance da objetividade do conhecimento nas ciências políticas e sociais, Aron, discordando do mestre, entendia que a “objetividade” da descrição não é garantida nem pela neutralidade, que considerava impossível, nem mesmo pela verdade dos fatos pois, segundo ele, “pode-se muito bem compor um retrato falso com fatos verdadeiros”.
Os pensadores mais afinados com a ortodoxia do liberalismo econômico encaram como “excentricidade” um certo distanciamento de Aron ao “individualismo metodológico” (adotado, na sua inteireza, por outro liberal convicto, o prêmio Nobel Friedrich von Hayek), que compreende os fatos sociais e suas explicações como estritamente decorrentes da conduta dos indivíduos - em contraposição, por exemplo, ao “holismo” de Karl Popper, com a visão sistêmica dos “conjuntos sociais”, em que a sociedade funciona por si mesma.
 
Aron não se inquietava com a questão. Ele admitia a linha da ambigüidade como resposta à supremacia das metodologias “holísticas” ou “individualistas”. No caso, essa postura parece explicar-se pelo fato do pensador, antes de se dedicar aos estudos isolados das questões econômicas, ter sido uma mente exercitada na análise da sociologia e da história, o que, no entanto, não excluía a crítica aberta ao planejamento econômico dos estados totalitários, de certo modo preconizada na concepção marxista de que “a natureza real do homem é a totalidade das relações sociais”.
 
Depois de mais de vinte anos de sua morte, ocorrida em 1983, a vasta e eclética obra de Aron continua a cada dia mais viva e atual. É difícil apontar, hoje, qual seria o seu substituto como interprete (e contendor) liberal sensível e polivalente. Outro importante pensador francês, Jean-François Revel, ensaísta liberal dos mais férteis e autor de obras analíticas do porte de “A Tentação Totalitária” e “Nem Marx nem Cristo”, e ainda o inglês Paul Johnson, historiador dos mais completos e ambiciosos do século, são dois nomes consideráveis para enfrentar os desafios das análises dos fenômenos econômicos, políticos e sociais que se avolumam diante dos nossos olhos. Mas terão eles, isoladamente, a argúcia, a abrangência e a originalidade de Aron?
 
A resposta pertence ao leitor.

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Os Intelectuais e o Poder
Intelectuais a serviço do poder, ou intelectuais assumindo o próprio pode

No último capítulo do seu livro O ópio dos intelectuais, Raymond Aron faz essa interrogação: “Fim da idade ideológica?” Após analisar os vários aspectos dos conflitos ideológicos, no confronto Estados Unidos e União Soviética, a criarem um contra o outro sistemas supranacionais e sustentado que “Liberalismo e Socialismo continuam inspirando convicções, animando controvérsias”, traz essa afirmação bastante significativa para os nossos tempos: “As revoluções do século XX não são proletárias, são pensadas e introduzidas por intelectuais”.

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O ÓPIO DOS INTELECTUAIS
 
Continuando a resenha do livro "O Ópio dos Intelectuais", de Aron, não pode nos escapar o trocadilho que ele fez no título com a famosa frase de Marx, de que "a religião é o ópio do povo". Aron não o fez por acaso: para ele o marxismo assumiu uma forma de religião secular, abraçada pela "intelectuária" do mundo.



 
 

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