A seguir um excerto do livro HISTÓRIA CONCISA DA REVOLUÇÃO RUSSA, de Richard Pipes, focalizando o papel desastroso dos intelectuais que transformam reinvindicações populares justas em revoluções sangrentas e regimes totalitários.
"A primeira revolução moderna ocorreu na França. Em sua fase inicial,
o movimento foi espontâneo e inconsciente: em junho de 1789, quando os
representantes dos três Estados fizeram o "Juramento do Jeu de
Paume", ato de desafio que desencadeou a Revolução, o que se tinha em vista
era uma "regeneração nacional". Ocorre que a herança rebelde passou
às mãos de ideólogos que viam no colapso da monarquia uma oportunidade única
para pôr em prática os ideais do Iluminismo — algo muito além do escopo
político limitado das revoluções inglesa e americana, aspirando nada menos do
que à criação de uma nova ordem social e, mesmo, uma nova geração de seres humanos.
No poder, os jacobinos imaginaram e puseram em prática medidas que por sua
ousadia de concepção e brutalidade de execução anteciparam o regime comunista
na Rússia. Daí em diante, "revolução" aludiu a planos grandiosos de
transformação do mundo — não mais a mudanças que aconteciam, mas a mudanças que
se realizavam.
"No século XIX, a Europa testemunhou a emergência de revolucionários
profissionais, intelectuais que devotavam tempo integral ao estudo da história
de levantes anteriores, à procura de linhas mestras táticas e à análise de sua
própria época, em busca de sinais de rebelião; quando os movimentos se
desencadeavam, eles intervinham, procurando conduzir os sentimentos voluntários
em objetivos conscientes. Esses intelectuais radicais anteviam um futuro marcado
por conflitos violentos e o progresso condicionado à destruição do sistema
tradicional de relações sociais. Sua meta era liberar a "verdadeira"
natureza dos homens, suprimida pela propriedade privada e pelas instituições
dela derivadas. Comunistas e anarquistas imaginaram a revolução como um
processo de completa transformação, não só de toda ordem política e
socioeconômica preestabelecida, mas da própria existência humana. Segundo Liev
Trótski, o que eles queriam era "virar o mundo".
"Essa tendência alcançou o apogeu na Revolução Russa de 1917. Embora
o colapso da monarquia tenha decorrido de fatores internos, os bolcheviques,
vencedores da batalha pós-czarista pelo poder, eram internacionalistas, adeptos
de idéias comuns a todos os intelectuais radicais no Ocidente. Eles não
assumiram o poder para mudar a Rússia, mas mudar o mundo, vendo seu próprio
país como o "elo mais fraco na cadeia do imperialismo", nada mais que
um trampolim para um levante global que alteraria totalmente a condição de vida
dos povos, para reencenar o sexto dia da Criação.
"Todas as revoluções pós-1789 tiveram causas numerosas e
complexas. Influenciados pela ideologia socialista e pelo modo de pensar sociológico,
os observadores do século XX tendem a atribuí-las às reivindicações das massas,
a atos de desespero, não passíveis de julgamento. Nos países anglo-saxões, em
que a polarização ideológica nunca foi muito forte, esse pensamento atraiu
muitos estudiosos. Mas a noção de que toda revolução é inevitável e, por
conseguinte, justificada, é apenas em parte verdadeira. Claro que em um país
cujo governo esmera-se em refletir os desejos da maioria do povo, onde os
gabinetes se sucedem pacificamente ante os votos de desconfiança e reina a
prosperidade, revoluções violentas são desnecessárias e improváveis; cada
eleição é uma sublevação incruenta. Mas esse truísmo não referenda seu oposto:
que, por meio de levantes violentos, a população sempre pretenda uma mudança
completa do sistema político e econômico — isto é, uma "revolução",
no sentido jacobino e bolchevique do termo. Historiadores observam que
rebeliões populares são conservadoras, objetivando a restituição de direitos
tradicionais injustamente cancelados; mirando o passado, suas intenções são específicas
e limitadas. Os cahiers des doléances — listas de queixas — apresentados pelos
camponeses franceses, em 1789, e, com outro nome pelos camponeses russos, em
1905, elencavam reivindicações concretas que o sistema vigente bem poderia ter
satisfeito.
"São os intelectuais radicais que transformam as demandas imediatas
em uma força destrutiva que tudo consome. Eles não desejam reformas, mas a
obliteração completa do presente, para criar uma ordem inédita, fundamentada
numa mítica Idade Dourada. Originários em sua maioria da classe média, os
revolucionários profissionais consideram-se os únicos a expressar os
verdadeiros interesses das "massas", cujas modestas reivindicações
eles desprezam. Pela insistência de que nada pode ser mudado para melhor a
menos que tudo seja mudado, convertem as revoltas populares em revoluções.
"Essa filosofia, mistura complicada de idealismo e luxúria pelo
poder, abre as portas a um conflito permanente. E uma vez que a sobrevivência
das pessoas comuns vincula-se a um ambiente estável e previsível, todas as
revoluções pós-1789 têm terminado em
desastre.
"Demandas populares, portanto, explicam apenas em parte as revoluções,
que não se realizam sem a infusão de idéias radicais. Seria difícil imaginar as
revoltas que sacudiram a Rússia depois de fevereiro e 1917 sem o colapso da
ordem pública, pressionada por uma Guerra Mundial que o governo em exercício
não podia enfrentar.
"O que levou país a uma torrente sem limite da utopia extrema foi
o fanatismo dos intelectuais que, em outubro de 1917, tiraram vantagem da crescente
anarquia para assumir o poder em nome do "povo", sem ousar uma única
vez sequer, nem então ou durante os setenta anos seguintes, obter um mandato
popular.
"A Revolução Russa constituiu-se no acontecimento mais importante
do nosso século. Não só desempenhou um papel decisivo em impedir a restauração
da paz depois da Primeira Guerra Mundial, como teve relação direta com o
surgimento, na Alemanha, do nacional-socialismo e com a eclosão da Segunda
Guerra Mundial, que o triunfo do nazismo tornou inevitável. Após a vitória dos
Aliados, em 1945, o regime comunista que emergira da Revolução manteve o mundo
em um estado de tensão permanente, chegando às vezes à iminência de outro
conflito global. "
(...)
A INTELLIGENTSIA
"Por que usar o termo — intelligentsia — quando dispomos de
palavras como "intelectuais", ou "intelectualidade"? A
resposta está em que precisamos de expressões diferentes para designar
fenômenos distintos — nesse caso, para distinguir aqueles que contemplavam
passivamente a vida, dos ativistas determinados a transformá-la. Sucintamente,
Marx definira-se pela segunda posição, quando escreveu: "Os filósofos têm
apenas interpretado o mundo de vários modos; a questão, porém, é mudá-lo."
Intelligentsia indica intelectuais que ambicionam o poder para mudar o mundo.
Sua origem etimológica é latina, passando do idioma alemão para o russo, no
século XIX, e para o inglês, após a Revolução de 1917.
"Conflitos e ressentimentos ocorrem em qualquer sociedade e são
resolvidos pacificamente, ou explodem em revolução, dependendo da existência ou
não de instituições democráticas capazes de encaminhar reivindicações por vias
legais, e da presença ou ausência de uma intelligentsia determinada a atiçar as
chamas do descontentamento popular, com o propósito de alcançar o poder. É a intelligentsia
radical, formada por "administradores profissionais da revolução",
que transforma reivindicações específicas e, portanto, remediáveis, na intransigente rejeição do status quo. Rebeliões
acontecem; revoluções são feitas.
"Mas, para que a intelligentsia consiga emergir, são necessárias
duas condições. A primeira delas é a ideologia materialista, que não vê seres
humanos como criaturas dotadas de uma alma imortal, mas apenas como entidades físicas
moldadas pelo meio. Um tal sistema de idéias torna possível sustentar que o
reordenamento moral do habitat humano possa produzir uma nova raça de criaturas
perfeitamente virtuosas. Munidos dessa crença, os membros da intelligentsia
justificam suas ambições políticas e são elevados ao status de engenheiros
sociais.
"A segunda condição aparece nas oportunidades econômicas que
asseguram independência à intelligentsia. A dissolução das classes sociais
tradicionais, o aparecimento de novas profissões liberais (como o jornalismo e
o ensino universitário) e, paralelamente, uma economia industrial carente de
especialistas, e um público leitor culto, tudo isso somado a garantias de
liberdade de expressão e associação, emancipam os intelectuais da sujeição ao
establishment, habilitando-os a assumir grande influência sobre a opinião
pública, seu principal meio de alavancagem, política."
JOSÉ GUILHERME MERQUIOR E AS PATRULHAS VEJA - O senhor quer dizer que os intelectuais são muito ciosos de seus interesses de classe? MERQUIOR - Basta ver a prática da excomunhão em meios universitários, como se cassam mandatos intelectuais no Brasil. O AI-5 intelectual nunca foi revogado. É a classe se organizando em corporação. É típica a maneira como se reage no país à polêmica. Quando um intelectual no Brasil se sente incomodado por um crítico, ele não contra-ataca as idéias do crítico, ataca o próprio crítico. Foi o que aconteceu comigo, na polêmica com a professora Marilena Lefort... VEJA - Quem? MERQUIOR - Aliás, Marilena Chauí, que em seu último livro psicografou trechos inteiros do francês Claude Lefort. Quando eu denunciei isso em artigo, as pessoas que vieram em defesa da Marilena procuraram desqualificar minha pessoa, a pretexto de que eu trabalho para o governo. Eu me refiro a Maria Sylvia Carvalho Franco, conhecida patrulheira ideológica paulista. Há exceções, felizmente. Eu também critiquei Carlos Nelson Coutinho, porque não me convenceu sua tentativa de provar que leninismo e democracia são compatíveis. Ele entendeu que se tratava de uma discussão de idéias. Respondeu com seus contra-argumentos marxistas. Quando isso acontece, há polêmica. Do contrário, o que se tem é um bom exemplo do clero intelectual agindo como seita. É uma das características de toda seita é o puritanismo, a intransigência no plano da conduta e o dogmatismo. VEJA - Aonde esse comportamento pode levar? MERQUIOR - Está levando a uma grafocracia. Criticam-se muito as várias cracias, mas não a grafocracia, termo cunhado pelo marxista austríaco Karl Renner, depois da II Guerra, para designar essa vocação moderna do intelectual para exercer o poder através do que ensina ou escreve. O mal da grafocracia é que, com ela, o humanismo deixa de ser um movimento intelectual para se transformar numa ideologia, no sentido marxista da palavra, isto é, um sistema que reflete os interesses de uma camada intelectual que se comporta como clero. VEJA - O filósofo Claude Lévi-Strauss, depois de ensinar na USP, escreveu que no Brasil todos querem ser eruditos, mas não têm a vocação nem o mérito. O senhor se considera um erudito? MERQUIOR - Como categoria neutra, sem dar à palavra conotações de bem ou mal, admito que em alguns trabalhos realizei um certo esforço de erudição. Mas a minha preocupação com a erudição é instrumental, quero equipar-me com ela para tratar de determinados problemas. Mas essa conversa do erudito que leu o último livro é uma bobagem. Ninguém leu o último livro. Essa época acabou na Renascença, quando as grandes bibliotecas tinham 500 volumes. A minha tem 7 000 volumes e não tem o último livro. Por outro lado, a erudição também vai ganhando um ar pejorativo serve para descartar certas idéias, um certo tipo de pensamento a pretexto de que "são coisas de erudito". A insinuação é de que existe outro saber, por graça infusa, que dispensa seus iluminados do trabalho de serem eruditos. Basta estar na posição "correta". Eu gostaria de saber quem dá esse atestado de dispensa. VEJA - Entre a esquerda e a direita, onde é que o senhor fica?MERQUIOR - Alguém definiu admiravelmente bem as pessoas de minha posição ideológica. Foi o polonês Leszek Kolakowski, num texto que é uma pérola - "Como ser conservador, liberal e socialista". No fundo da visão conservadora, existe um elemento muito positivo, que consiste em acreditar que nem todos os males humanos têm causas sociais, sendo portanto elimináveis através de mudanças sociais. Do lado liberal, a idéia básica, também verdadeira, é que a finalidade do Estado é dar segurança, sem esclerosar a sociedade com um sistema demasiado refratário à iniciativa individual. Enfim, o socialismo tem de válida a idéia de que o pessimismo antropológico, por trás da posição conservadora, não deve ter o poder absolutista de evitar as reformas sociais citadas pelo reformismo esclarecido. VEJA - Trocando em miúdos...MERQUIOR - ...Eu me sinto um pouco um iluminista. Tenho confiança no progresso, acredito no progresso pela racionalidade. Essa crença já foi característica dos socialistas, mas hoje os socialistas mais sofisticados abandonaram seu compromisso histórico com o evolucionismo, direita e esquerda ficaram muito parecidas nesse aspecto: o repúdio aos tempos modernos. Adorno, que se proclamava neomarxista, chamou nossa época de satânica. No século XVIII, quem acreditava no progresso eram os filósofos. Atualmente, intelectual que acredita no progresso é coisa rara. Hoje em dia, quem acredita no progresso, felizmente, são as massas. http://veja.abril.com.br/especiais/35_anos/ent_merquior.html |
|||
O PENSAMENTO CONSERVADOR
O QUE É SOCIALISMO? O SOCIALISMO REAL, CRIMES E ARGUMENTAÇÕES DESONESTAS - OLAVO DE CARVALHO
*
REVOLUÇÃO DE INTELECTUAIS - PATRULHAS IDEOLÓGICAS - JOSÉ GUILHERME MERQUIORO PRAZER REVOLUCIONÁRIO DA DESTRUIÇÃO - O SONHO DA RAZÃO PRODUZ MONSTROSUm século de Aron – O combatente da liberdade
| 13 Março 2005
Arquivo
“Os intelectuais radicais não querem compreender nem transformar o mundo, querem denunciá-lo”.
Raymond Aron.
Raymond Aron nasceu em 14 de março de 1905, em Paris, e é natural que hoje os liberais lembrem-se dele como o grande combatente das liberdades, um dos mais atuantes na França do século passado, país dominado por Sartre, Merleau-Ponty, Lévi-Strauss, entre outros pensadores esquerdistas de peso.
A vida de Aron, que completaria 100 anos se estivesse vivo, foi um combate só. De início, homem de esquerda como Sartre, ao lado de quem estudou na Escola Normal Superior, na Rue d´Ulm (Paris), tornou-se, no seu tempo, para além de ativo professor universitário e jornalista, intérprete privilegiado dos fenômenos políticos e sociais à luz de vastos conhecimentos históricos, econômicos e sociológicos. A descrença em relação ao socialismo e, em especial, ao comunismo, levou-o a polêmicas ferozes com representação expressiva da “intelligentzyia” francesa, que nunca o perdoou pelo fato de, entre o culto à União Soviética de Stálin e a defesa dos Estados Unidos, postar-se ao lado dos americanos, chegando mesmo a articular, na ordem prática das coisas, a marcante Aliança Atlântica - uma barreira contra o expansionismo comunista que no pós-guerra dominava metade da Europa e ameaçava tomar o continente inteiro. Pensando em Aron, o amigo de quem se tornou rival, Sartre escreveu: “Todos os anti-comunistas são cães”.
Mas Aron conhecia o comunismo de sobra e, a despeito de justificativas criadas nos salões da aristocracia esquerdista, não imputava os males do regime totalitário apenas ao stalinismo. Melhor que ninguém, virou pelo avesso a obra de Marx, a quem dedicou livro minucioso, “O Marxismo de Marx” (Editora Arx, 2004) nela descortinando a sintomatologia do universo concentracionário que acompanha o pensamento (totalizador) do pai do “socialismo cientifico”. O próprio Aron confessa, no prefácio do livro, que atravessou 32 anos de sua vida estudando os escritos de Marx, para chegar a uma conclusão sobre o comunismo: “Creio não haver doutrina tão grandiosa no equívoco, e tão equívoca na grandeza. Foi por isso que a ela dediquei tantas horas...”
Ao pensador que viveu precisos 78 anos, nunca faltou a energia e a capacidade de expressar a avaliação do mundo que o cercava. Entre milhares de artigos, depoimentos e entrevistas, escreveu livros fundamentais para a compreensão crítica dos fenômenos sociais e políticos. De fato, em obras como “Introdução à Filosofia da História” (Gallimard, 1938), ensaio contundente sobre problemas teóricos do conhecimento histórico; as “Dezoito Lições sobre a sociedade industrial” (Gallimard, 1962), que traça o perfil positivo da sociedade industrial no Ocidente; o percuciente “Paz e Guerra entre as nações”, estudo sobre a raiz dos conflitos bélicos na democracia e nos sistemas totalitários; o instigante “De uma sagrada família a outra” (Gallimard, 1969), coletânea de ensaios sobre os marxismos imaginários e, sobretudo, em “Plaidoyer pour l`Europe decadente” (Robert Laffont, 1977), livro nunca editado no Brasil, mas que faz a lúcida defesa da civilização ocidental - Raymond Aron justifica plenamente o porquê do antagonismo sartreano e a extraordinária dimensão que atingiu na história do pensamento moderno.
No contundente “O Ópio dos Intelectuais” (1955), publicado no Brasil em 1980 pela UnB, escrito antes do degelo do regime socialista, Aron desmonta com precisão de relojoeiro os mitos da esquerda, da revolução e do operariado, desarticulando, com argumentos substanciais, a impostura do que chama “ideocracia” – o despotismo do preconceito ideológico – e, por extensão, a conhecida figura do “ideocrata” – o burocrata possuído por ideologias totalitárias. Neste particular, chega à perfeição traçando o perfil do intelectual que assume o papel de “confidente da providência”, o tipo que se vende como defensor dos dominados e entoa (em nome da “moral histórica” que diz ser portador) loas em torno de um mundo “mais justo e fraterno que virá no futuro” – e para o qual, na prática, nada tece além da pura “festividade”.
O solitário Aron - que repudiou o marxismo existencialista/irracional de Sartre e o “sintomalismo” de Althusser (o homem da “teoria lacunar”, que lia os “silêncios” de Marx) -, a despeito de admitir o contrário, representou muito mais do que mero “espectador engajado” (como chegou a auto-definir-se numa série de entrevistas que fez para a televisão e ensejou livro com o mesmo título de Jean-Louis Missika e Dominique Wolton, publicado pela Nova Fronteira, em 1982). Na realidade, além de bom combatente liberal, ele ajudou a entender como nenhum outro pensador europeu o problemático século 20 – com destaque, em retrospecto, para temas como a França dos anos 30, a segunda grande guerra, a guerra fria, a descolonização, o degelo soviético, a era da “coexistência pacífica”, a guerra do Vietnã, o maio de 68 – aprofundando a reflexão sobre a contradição existente entre liberdade e igualdade – sem jamais deixar de assinalar, sempre com ironia, que o império soviético, ambicionando as duas coisas, excluiu a liberdade sem ao menos “sintonizar” a igualdade. De fato, mais do que testemunha, Aron atuou firmemente no campo da discussão das idéias, na análise da evolução do pensamento contemporâneo e na reflexão dos grandes acontecimentos do seu tempo.
Como arauto da liberdade, o autor de “Histoire et dialetique de la Violence” encontrou na filosofia liberal “o sistema de valores que podia estruturar um modelo de ação”. Para ele, o liberalismo, respeitando o pluralismo das idéias e privilegiando o empirismo na análise e na ação, representa ainda o sistema “menos mau” para orientar o exercício da política. De resto, o pensador de origem judaica considerava que a atividade política não representa obrigatoriamente a luta entre o bem e o mal mas, sim, a escolha entre o “preferível e o detestável”. Pessoalmente, como liberal convicto, procurou mobilizar a crença na força da iniciativa individual, na livre concorrência e na importância da sociedade industrial - esta, como se sabe, permanentemente satanizada pelos fetichistas da “alienação”, a idéia proposta por Marx, exaustivamente explorada pela Escola de Frankfurt.
No seu livro mais cativante, “Memó ;rias” (Nova Fronteira, 1986) , publicado pouco antes de morrer, de leitura obrigatória para quem deseje vislumbrar com objetividade os principais acontecimentos do século XX, Aron confessa a grande influência que recebeu do pensamento alemão, em especial do historicismo de Max Weber, o sociólogo para quem o cientista social deve distinguir com rigor “aquilo que é do que deveria ser”, afirmando, como corolário, que nenhuma compreensão histórica e social está completa se não incluir a dimensão religiosa, política e moral dos agentes humanos.
Neste particular, embora “movido” pelo conceito da neutralidade que Weber considera preponderante para o alcance da objetividade do conhecimento nas ciências políticas e sociais, Aron, discordando do mestre, entendia que a “objetividade” da descrição não é garantida nem pela neutralidade, que considerava impossível, nem mesmo pela verdade dos fatos pois, segundo ele, “pode-se muito bem compor um retrato falso com fatos verdadeiros”.
Os pensadores mais afinados com a ortodoxia do liberalismo econômico encaram como “excentricidade” um certo distanciamento de Aron ao “individualismo metodológico” (adotado, na sua inteireza, por outro liberal convicto, o prêmio Nobel Friedrich von Hayek), que compreende os fatos sociais e suas explicações como estritamente decorrentes da conduta dos indivíduos - em contraposição, por exemplo, ao “holismo” de Karl Popper, com a visão sistêmica dos “conjuntos sociais”, em que a sociedade funciona por si mesma.
Aron não se inquietava com a questão. Ele admitia a linha da ambigüidade como resposta à supremacia das metodologias “holísticas” ou “individualistas”. No caso, essa postura parece explicar-se pelo fato do pensador, antes de se dedicar aos estudos isolados das questões econômicas, ter sido uma mente exercitada na análise da sociologia e da história, o que, no entanto, não excluía a crítica aberta ao planejamento econômico dos estados totalitários, de certo modo preconizada na concepção marxista de que “a natureza real do homem é a totalidade das relações sociais”.
Depois de mais de vinte anos de sua morte, ocorrida em 1983, a vasta e eclética obra de Aron continua a cada dia mais viva e atual. É difícil apontar, hoje, qual seria o seu substituto como interprete (e contendor) liberal sensível e polivalente. Outro importante pensador francês, Jean-François Revel, ensaísta liberal dos mais férteis e autor de obras analíticas do porte de “A Tentação Totalitária” e “Nem Marx nem Cristo”, e ainda o inglês Paul Johnson, historiador dos mais completos e ambiciosos do século, são dois nomes consideráveis para enfrentar os desafios das análises dos fenômenos econômicos, políticos e sociais que se avolumam diante dos nossos olhos. Mas terão eles, isoladamente, a argúcia, a abrangência e a originalidade de Aron?
A resposta pertence ao leitor.
*
Os Intelectuais e o Poder
Intelectuais a serviço do poder, ou intelectuais assumindo o próprio pode
No último capítulo do seu livro O ópio dos intelectuais, Raymond Aron faz essa interrogação: “Fim da idade ideológica?” Após analisar os vários aspectos dos conflitos ideológicos, no confronto Estados Unidos e União Soviética, a criarem um contra o outro sistemas supranacionais e sustentado que “Liberalismo e Socialismo continuam inspirando convicções, animando controvérsias”, traz essa afirmação bastante significativa para os nossos tempos: “As revoluções do século XX não são proletárias, são pensadas e introduzidas por intelectuais”.
*
O ÓPIO DOS INTELECTUAIS
Continuando a resenha do livro "O Ópio dos Intelectuais", de Aron, não pode nos escapar o trocadilho que ele fez no título com a famosa frase de Marx, de que "a religião é o ópio do povo". Aron não o fez por acaso: para ele o marxismo assumiu uma forma de religião secular, abraçada pela "intelectuária" do mundo.
"Quando
um país se encontra à deriva, a vítima principal é a confiança, um
ingrediente vital. Sem ela, grassa a insegurança e falta crédito na
economia. Sem crédito, não há investimento. E sem investimento, não há
progresso, nem emprego.
"O
revisionismo cultural produzido pela opinião ideológica é antinatural e
corrosivo. A Dra. Marie Louise von Franz concluiu, na década de 1950,
que: “O sucesso da propaganda provoca uma repressão das reações
inconscientes. E a repressão da massa leva à dissociação neurótica e à
enfermidade mental, já que está em oposição aos nossos instintos”
********************************************** A PROIBIÇÃO DE PERGUNTAR - "Por linguagem ideológica, refiro-me ao
fenômeno diagnosticado por Eric Voegelin em uma fração considerável do
pensamento político moderno e que marcaria um ineditismo em relação à
antiguidade clássica: a "PROIBIÇÃO DE PERGUNTAR". Não se trata aí, diz
Voegelin, de uma simples resistência à análise, coisa que, decerto,
também existia no passado. Não estamos falando apenas de um apego
passional a opiniões (doxai) em face de uma análise (episteme) que as
contrarie. Como esclarece o filósofo alemão: "Em vez disso,
confrontamos-nos aqui com pessoas que sabem que, e por que, suas
opiniões não podem resistir a uma análise crítica, e que, portanto,
fazem da proibição do exame de suas premissas parte do seu dogma." (Eric
Voegelin). Essa linguagem ideológica, sustentada sobre a proibição de
perguntar, é um dos traços mais característicos do ambiente intelectual
marxista e esquerdista de modo geral. (...) Gramsci foi, inegavelmente,
um dos mais hábeis técnicos em linguagem ideológica." (FLÁVIO GORDON - A
CORRUPÇÃO DA INTELIGÊNCIA)
|
Nenhum comentário:
Postar um comentário