sábado, 1 de agosto de 2020

SAUL ALINSKY - O demônio viveu entre nós

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O TOTALITARISMO ELIMINA TODOS OS LAÇOS SOCIAIS E FAMILIARES 
As novas classes e nacionalidades barravam o caminho de Stálin para o governo totalitário. A fim de produzir a necessária MASSA ATOMIZADA E AMORFA, precisava primeiro liquidar o resto de poder dos Sovietes. Por volta de 1930, os últimos vestígios das antigas instituições comunais haviam desaparecido: em seu lugar existia uma burocracia partidária firmemente centralizada, cujas tendências para a russificação não eram muito diferentes daquelas do regime czarista. 

O governo bolchevista empreendeu então a liquidação das classes e começou, por motivos ideológicos e de propaganda, com as classes proprietárias, a nova classe média das cidades e os camponeses do interior, cuja liquidação foi mais meticulosa e cruel que a de qualquer outro grupo, e foi levada a cabo por meio de fome artificial e deportação, a pretexto de expropriação dos kulaks e de coletivização. A liquidação das classes média e camponesa terminou no início da década de 30: os que não se incluíam entre os muitos milhões de mortos ou milhões de deportados sabiam agora “quem mandava neste país” e haviam compreendido que as suas vidas e as vidas de suas famílias não dependiam dos seus concidadãos, mas somente dos caprichos do governo, aos quais tinham de enfrentarem completa solidão. Não há classe que não possa ser extinta quando se mata um número suficientemente grande de seus membros.

A próxima classe a ser liquidada como grupo era a dos operários. Como classe, ofereciam muito menor resistência que os camponeses, porque a expropriação dos donos de fábricas, que eles haviam realizado espontaneamente durante a Revolução, havia sido imediatamente frustrada pelo governo, que confiscara as fábricas como sendo propriedade do Estado, sob o pretexto de que o Estado pertencia ao proletariado. O sistema stakhanovista, adotado no início da década de 30, eliminou a solidariedade e a consciência de classe dos trabalhadores pela concorrência feroz implantada pela solidificação de uma aristocracia operária, separada do trabalhador comum por uma distância social mais aguda que a distância entre os trabalhadores e a gerência. Esse processo foi completado em 1938, quando a criação do documento de trabalho transformou oficialmente toda a classe operária russa num gigantesco corpo de trabalhadores forçados. 

Finalmente, veio a liquidação daquela burocracia que havia ajudado a executar as medidas anteriores de extermínio. Stálin levou dois anos, de 1936 a 1938, para se desfazer de toda a aristocracia administrativa e militar da sociedade soviética; quase todas as repartições públicas, fábricas, entidades econômicas e culturais e agências governamentais, partidárias e militares passaram a novas mãos, quando “quase a metade do pessoal administrativo havia sido eliminada”, e foram liquidados mais de 50% de todos os membros do partido e “pelo menos outros 8 milhões de pessoas”. E, como esse expurgo geral terminou com a liquidação das mais altas autoridades policiais — as mesmas que antes haviam organizado o expurgo geral —, nem mesmo os oficiais da GPU, que haviam instaurado o terror, podiam pensar que, como grupo, ainda representassem alguma coisa.

Desde os tempos antigos, a imposição da igualdade de condições aos governados constituiu um dos principais alvos dos despotismos e das tiranias, mas essa equalização não basta para o governo totalitário, porque deixa ainda intactos certos laços não políticos entre os subjugados, tais como LAÇOS DE FAMÍLIA e de interesses culturais comuns. O totalitarismo deve chegar ao ponto em que tem de acabar com a existência autônoma de qualquer atividade que seja, mesmo que se trate de xadrez. Os amantes do “xadrez por amor ao xadrez”, adequadamente comparados por seu exterminador aos amantes da “arte por amor à arte”, demonstram que ainda não foram absolutamente atomizados todos os elementos da sociedade, cuja UNIFORMIDADE INTEIRAMENTE HOMOGÊNEA É CONDIÇÃO FUNDAMENTAL PARA O TOTALITARISMO.

A atomização da massa na sociedade soviética foi conseguida pelo uso de repetidos expurgos que invariavelmente precediam o verdadeiro extermínio de um grupo. A fim de destruir todas as conexões sociais e familiares, os expurgos eram conduzidos de modo a ameaçarem com o mesmo destino o acusado e todas as suas relações, desde meros conhecidos até os parentes e amigos íntimos. A “culpa por associação” é uma invenção engenhosa e simples; logo que um homem é acusado, os seus antigos amigos se transformam nos mais amargos inimigos: para salvar a própria pele, prestam informações e acorrem com denúncias que “corroboram” provas inexistentes. Em seguida, tentam provar que a sua amizade com o acusado nada mais era que um meio de espioná-lo e delatá-lo como sabotador, trotskista, espião estrangeiro ou fascista. Uma vez que o mérito é “julgado pelo número de denúncias apresentadas contra os camaradas”, é óbvio que a mais elementar cautela exige que se evitem todos os contatos íntimos com aqueles que sejam obrigados, pelo perigo da própria vida, à necessidade de arruinar a de outrem. Em última análise, foi através do desenvolvimento desse artifício, até os seus máximos e mais fantásticos extremos, que os governantes bolchevistas conseguiram criar uma sociedade atomizada e individualizada como nunca se viu antes, e a qual nenhum evento ou catástrofe poderiam por si só ter suscitado.

Os movimentos totalitários são organizações maciças de indivíduos atomizados e isolados. Distinguem-se dos outros partidos e movimentos pela exigência de lealdade total, irrestrita, incondicional e inalterável de cada membro individual. Essa exigência é feita pelos líderes dos movimentos totalitários mesmo antes de tomarem o poder e decorre da alegação, já contida em sua ideologia, de que a organização abrangerá, no devido tempo, toda a raça humana. Contudo, onde o governo totalitário não é preparado por um movimento totalitário (como foi o caso da Rússia em contraposição com a Alemanha nazista), o movimento tem de ser organizado depois, e as condições para o seu crescimento têm de ser artificialmente criadas de modo a possibilitar a lealdade total que é a base psicológica do domínio total. Não se pode esperar essa lealdade a não ser de seres humanos completamente isolados que, desprovidos de outros laços sociais — de família, amizade, camaradagem — só adquirem o sentido de terem lugar neste mundo quando participam de um movimento, pertencem ao partido. 

A lealdade total só é possível quando a fidelidade é esvaziada de todo o seu conteúdo concreto, que poderia dar azo a mudanças de opinião. Os movimentos totalitários, cada um ao seu modo, fizeram o possível para se livrarem de programas que especificas sem um conteúdo concreto, herdados de estágios anteriores e não totalitários da sua evolução. Por mais radical que seja, todo objetivo político que não inclua o domínio mundial, todo programa político definido que trate de assuntos específicos em vez de referir-se a “questões ideológicas que serão importantes durante séculos” é um entrave para o totalitarismo.

O verdadeiro objetivo do fascismo era apenas a tomada do poder e a instalação da “elite” fascista no governo. Já o totalitarismo jamais se contenta em governar por meios externos, ou seja, através do Estado e de uma máquina de violência; graças à sua ideologia peculiar e ao papel dessa ideologia no aparelho de coação, o totalitarismo descobriu um meio de subjugar e aterrorizar os seres humanos internamente.

Referência: Hannah Arendt, "Origens do Totalitarismo" pgs 287-291

 

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