Osvaldo Peralva, membro brasileiro do Kominform, sediado em Bucareste, ao denunciar a conspiração toda em O Retrato, foi banido do mundo intelectual e classificado como agente da CIA. O que Peralva denunciou com conhecimento de causa foi mais tarde documentado por William Waack, no excelente Camaradas (Companhia das Letras, 1993), com pesquisas nos arquivos do Kremlin.
"O RETRATO"
2. O HOMEM DO APARELHO
Impossível precisar o dia. Recordo-me que foi em 1953, na segunda quinzena de agosto. Impossível precisar tampouco em que Estado do Brasil me encontrava - Rio de Janeiro, Minas Gerais ou São Paulo. Recordo-me apenas de que o lugar distava umas quatro horas do Rio, lugar onde eu partira em automóvel, certa noite, fazendo todo o trajeto em alta velocidade, os olhos fechados, como de praxe. Agora achava-me em meio de vasta chácara, no quintal de uma casa que era peça integrante do aparelho clandestino do Partido.
Por aquela época servia de sede a mais um curso de marxismo-leninismo, do qual participavam umas trinta pessoas, em sistema de internato. Mesmo sem ser aluno, desempenhando então outra tarefa, eu me enquadrava no regime vigente, ajudando nos serviços domésticos, dormindo em esteiras no chão e entrando na escala de plantonistas que se revezavam durante a noite, armados ou desarmados, conforme o caso, atentos a quaisquer ruídos ou fenômenos estranhos que surgissem.
Fazia uma semana que eu havia chegado ali e minha tarefa estava quase concluída. Encontrava-me no momento folheando "O QUE FAZER?", de Lenin, em busca de uma citação para intercalar no trabalho de um dirigente do PCB. O dono do trabalho arrastou uma cadeira para junto de mim, falou:
— Como vai isso?
— Terminando...
Ele baixou a voz, prosseguiu:
— Escuta aqui, tu fôste a Viena, há alguns meses, para o Congresso da Paz; naturalmente teu passaporte está em ordem, não está? Bem, então vai-te preparando discretamente (cuidado, não deixa tua companheira perceber!) porque dentro de uma ou duas semanas vais embarcar para o exterior ... Fêz um instante de suspense e logo, como quem oferece o paraíso numa bandeja, esclareceu, balançando a cabeça: — Vais para a URSS.
Tentei dissimular a felicidade que me banhava a alma. E perguntei quanto tempo iria ficar por lá. Ele franziu a testa, impeliu para cima, com um movimento do queixo, o lábio superior, coberto pelo bigode largo e espesso, fez um gesto vago com a mão direita:
— Uns dois ou três anos...
Levantou-se, estava feita a comunicação, saiu. Eu fiquei desarvorado e só. Era de tarde e fazia sol, mas nesse momento tudo me pareceu escuro e confuso. Conhecer Moscou, a Meca do comunismo internacional, era a grande aspiração acariciada por todos nós. E esta possibilidade agora me inundava de alegria. Mas eis que, ao mesmo tempo, em sentido contrário, intervieram outros sentimentos. É que, estreitamente vinculadas a mim pelo amor, pelo contato diário, por um hábito de convivência que se transformara em necessidade, existiam duas pessoas — minha filha, de três anos de idade, e a mulher com quem me casara fazia quatro anos, e a idéia da separação provocava em mim uma angústia sufocante.
Confesso que durante alguns segundos embalei-me numa ilusão absurda: não aceitar a tarefa. Aparentemente, eu era livre de cumpri-la ou recusá-la. Decerto, há circunstâncias em que a pessoa é coagida a praticar um ato contra sua vontade e até mesmo contra sua consciência. Pode acontecer que o filho seja moralmente forçado a agir assim, sob imposição da autoridade paterna. Mas eu não era menor, nem o homem que me falou era meu pai: nove anos antes, eu ignorava até sua existência. Pode acontecer também que o militar seja disciplinarmente forçado, sobretudo em tempo de guerra, a entrar numa embarcação, por exemplo, sem sequer conhecer qual o destino. Mas eu não era militar, nem estávamos em estado de guerra. Pode acontecer ainda que a pessoa, para não perder uma situação econômica vantajosa, se submeta a uma imposição semelhante. Mas eu ganhava, como funcionário do Partido, infinitamente menos do que poderia ganhar exercendo minha profissão na vida civil. Enfim, não se configurava ali nenhum dos casos típicos. Entretanto, se eu cheguei a vacilar alguns segundos sobre a aceitação da tarefa, o mesmo não aconteceu ao indivíduo de bigode largo: ele tinha absoluta certeza de que eu a aceitaria e por isso limitou-se a comunicar-me quando eu deveria partir.
Com efeito, maior que a autoridade paterna, mais rígida que a disciplina militar, mais eficaz que a coação econômica eram a autoridade, a disciplina e o poder coativo desse indivíduo. Porque ele manejava uma das máquinas mais eficientes que os homens inventaram para despersonalizar os próprios homens: o Aparelho do Partido Comunista. Com esse fim, o Aparelho põe em funcionamento, quando necessário, as seguintes engrenagens:
1) o apelo à mística partidária;
2) o terrorismo ideológico;
3) a pressão das opiniões coletivas de grupos partidários e periféricos;
4) a ameaça de expulsão e, em certos casos, de violência física;
5) os canais de difamação.
Pode-se imaginar, portanto, como é difícil, dificílimo mesmo, a um militante comunista que faça parte do Aparelho, opor-se a suas decisões. Esse militante, em geral, é uma pessoa sem vontade própria, nem consciência própria. Não se pertence: de unidade (indivíduo) converte-se em parcela inseparável de uma entidade (o partido). Em suma, o homem do Aparelho é, espiritualmente, um alienado. E eu era um homem do Aparelho.
A ESCOLA DA REVOLUCÃO
A Escola, em Moscou, para a formação de revolucionários de tipo bolchevista, não se restringia ao ensino dos fundamentos teóricos do marxismo- leninismo. Através da pressão ideológica e do próprio regime de internato, onde se fazia a apologia da obediência cega, e o endeusamento de tudo que fosse soviético, buscava-se transformar cada aluno num indivíduo despersonalizado, sem quaisquer interesses ou vontade que não fossem os interesses e a vontade da direção do Partido; que aceitasse voluntàriamente uma disciplina supermilitarizada, sendo capaz de cumprir, sem vacilar, as ordens mais absurdas; que não tentasse pensar, a não ser por meio de chavões, para evitar desvios da linha do Partido, fixada pela direção suprema; que considerasse a fidelidade ante a URSS e o PCUS como "a pedra de toque do internacionalismo proletário", constituindo-se dentro de seu próprio partido num homem de Moscou.
Do livro de Osvaldo Peralva "O RETRATO"
MEMÓRIAS COMUNISTAS - OSVALDO PERALVA - ANTÕNIO PAIM
http://conspiratio3.blogspot.com.br/2015/03/memorias-comunistas.html
OSVALDO PERALVA DEMOLE UTOPIA BOLCHEVIQUE
http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2015/05/1635450-autor-osvaldo-peralva-demole-utopia-bolchevista-em-o-retrato.shtml
Livro 'O Retrato' narra desilusão com o comunismo
http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2015/05/1635451-livro-o-retrato-narra-desilusao-com-o-comunismo.shtml
LAVAGEM CEREBRAL - ALDOUS HUXLEY
http://conspiratio3.blogspot.com.br/2013/04/lavagem-cerebral-aldous-huxley.html#uds-search-results
MANIPULAÇÃO DO COMPORTAMENTO
http://conspiratio3.blogspot.com.br/search/label/MANIPULA%C3%87%C3%83O%20DO%20%20COMPORTAMENTO
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