Profecias do diabo
Olavo de Carvalho
Diário do Comércio, 22 de abril de 2013
Uma vida repleta de ocupações não tem permitido
dar às minhas ideias a exposição escrita toda arrumadinha que algumas
delas merecem. Espalho-as, de maneira fragmentária e anárquica, em
artigos, aulas e conferências, na vaga esperança de que, após a minha
morte, alguma alma caridosa junte as peças e as monte em equipamentos
mais utilizáveis pelo grande público.
Uma delas é a do poder imanente dos
significados embutidos nos símbolos históricos. Ela diz, resumidamente, o
seguinte: a história é feita das livres escolhas e decisões humanas,
mas, quando os homens se deixam guiar por ideias e símbolos cujo
integral significado lhes escapa no momento, esse significado invisível
acaba por se manifestar à plena luz do dia sob a forma de fatalidades
históricas incontroláveis.
Mesmo depois do fato consumado ainda existe
alguma dificuldade em perceber que já estavam enunciadas na formulação
originária. Essa dificuldade emana do hábito moderno do pensamento
metonímico, que concebe as propostas de ação tão somente por uma parte
das suas qualidades autoproclamadas, sem sondar o sentido substantivo da
ação planejada, e portanto, sem atinar com suas consequências
inevitáveis.
Na história sacra e profética, esses
desenvolvimentos anunciam-se previamente de maneira nítida. O Antigo
Testamento prevê com clareza o destino tormentoso dos judeus, e o Novo
anuncia a autodecomposição da Igreja, que hoje, diante dos nossos olhos,
enche de temor as almas dos crentes atônitos.
Na história profana, os símbolos vêm encobertos
por densas camadas de confusão metonímica. A progressiva manifestação
do seu significado simula, no quadro histórico maior, a evolução de uma
neurose desde um trauma de infância longamente esquecido.
Assim como Hegel falava de uma "astúcia da
Razão", que conduzia os homens sem que eles o percebessem, pode-se
perfeitamente falar de uma "astúcia do inconsciente", em que os símbolos
carregados de esperança guiam a humanidade em direção a catástrofes e
sofrimentos.
Um exemplo é o projeto socialista, que se
apresenta como "socialização dos meios de produção", em nome de uma
"sociedade sem classes". Por trás desses slogans, o socialismo é
substantivamente a unificação do poder político com o poder econômico,
dissolvendo uma das principais garantias da liberdade na sociedade
capitalista e anunciando a formação de uma superclasse governante
onipotente e praticamente indestrutível.
A profecia embutida não é discernível só na
formulação das teorias e propostas, mas também nos símbolos que as
condensam para a imaginação popular. De algum modo, a letra do hino da
Internacional comunista, composta em 1871 por Eugène Pottier e posta em
música em 1888 por Pierre De Geyter– a qual, até hoje, fascina a mente
das multidões militantes com a imagem da bela sociedade igualitária – já
contém, na primeira estrofe, o anúncio da debacle apocalíptica que veio
a constituir a história do comunismo. Mesmo após a queda da URSS, no
entanto, essa profecia continua tão mal compreendida que muitos tentam
ainda realizá-la por meios novos, mais inventivos e desnorteantes,
enganando-se a si mesmos com feroz devoção, ainda mais intensa e louca
do que aquela que guiou os pioneiros da ditadura soviética.
A o conclamar ao grande empreendimento da
revolução socialista os "danados da terra" e os "condenados da fome"
(les damnés de la terre, les forçats de la faim), o poema já insinua que
quem os convoca à ação é, hegelianamente, "a Razão!, a deusa
inspiradora de 1789. Mas de onde vem a voz dessa divindade? La raison
tonne en son cratère: a Razão faz-se ouvir como o ronco temível de um
trovão que não vem dos céus, mas das profundezas de uma cratera. Ela é
aí concebida, com toda a evidência, não como um ideal superior que acena
aos homens desde uma altura divina, mas como uma força ctônica,
subterrânea, infernal.
Há uma lógica dentro dela, mas é a lógica da
astúcia demoníaca, a mesma com que Satanás surpreende o poeta no Inferno
de Dante: "Não imaginavas que eu também fosse lógico". A
inevitabilidade interna do processo que inspira e dirige a ação das
massas acaba indo, de fato, numa direção imprevista e catastrófica, mas
nem por isso menos encadeada, com rigor implacável, a uma premissa
obscura e mal compreendida.
Nem mesmo a geração de comunistas que foi
levada ao desespero e até ao suicídio pela revelação dos crimes
soviéticos em 1956 chegou a atinar, retroativamente, com a lógica
trágica imanente ao ideal socialista. Todos explicaram o desastre como
fruto acidental de traições e desvios, sem notar que com isso desmentiam
no ato sua própria teoria da necessidade histórica, na qual o acaso e
os caprichos individuais contam muito pouco, ou quase nada.
O verso seguinte é ainda mais eloquente: C’est
l’éruption de la fin. O fim emerge do ventre de um vulcão. Fim do quê? O
verso não diz. A recepção metonímica aceita, sem exame, que é o fim das
injustiças. Mas a expressão "o fim", desacompanhada de um genitivo
explícito, anuncia somente morte e destruição.
E as palavras que vêm em seguida ressoam com um
tom ainda mais sinistro: Du passé faisons table rase: apagar o passado,
falsificar a história em nome de um apelo estimulante, tem sido, de
fato, uma das principais ocupações da historiografia oficial
esquerdista, induzindo as massas a entregar-se entusiasticamente à busca
de um propósito cuja raiz desconhecem e cujos frutos, por isso, sempre
hão de surpreendê-las com o sabor amargo de um enigma diabólico.
Profecias do diabo - Olavo de Carvalho http://www.olavodecarvalho.org/semana/130422dc.html
True Outspeak - Olavo de Carvalho - 22 de abril de 2013.
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