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segunda-feira, 21 de março de 2022

OLAVO DE CARVALHO - FILOSOFIA: ALÉM DO PENSAMENTO - DADO, COISA EM SI, SUBSTÂNCIA, PRIMEIRO MOTOR



Os pensadores e o êxtase

Olavo de Carvalho

O Globo, 10 de junho de 2000

Chega a ser insultuoso chamar os filósofos de “pensadores”. Pensar é ir de uma idéia a outra, seja esvoaçando entre similitudes, seja despencando escada abaixo, do universal ao particular, como um corpo inerte arrastado pela força gravitacional das conseqüências. Um gato realiza a primeira dessas modalidades sem muito esforço, um macaco a segunda. Tão corriqueiras e sem mérito são essas atividades que não podemos parar de praticá-las. É mais fácil suspender a respiração do que deter o fluxo incoercível das sinapses. Não é justo que tipos raros e extravagantes como os filósofos recebam seu nome de algo que todo mundo faz o tempo todo. Alguma originalidade eles têm de possuir, caramba, pelo menos em dose que justifique lhes darmos cicuta para que parem de falar, e depois ficarmos nos perguntando por dois milênios o que é que eles estavam dizendo mesmo.

A originalidade do filósofo consiste em que ele não deixa o pensamento seguir a linha espontânea da associação de idéias ou o automatismo da pura dedução, mas o obriga a sair do seu curso natural e voltar-se para uma coisa que não é pensamento. Essa coisa — o mundo, o ser, a realidade ou como se queira chamá-la — é hostil ao pensamento porque insiste em ter vontade própria e ignora soberanamente as vias gramaticais, lógicas e semânticas por onde o nosso pensar escorre com tanta naturalidade e conforto. “Meus caminhos não são os vossos caminhos, nem os meus pensamentos os vossos pensamentos, diz o Senhor” (Is. 55:8). O pensamento do não-filósofo vive de pensamentos: de uma idéia extrai outra, e outra, e outra, alheio a intervenções superiores, e por aí vai produzindo variações e floreios até que a velhice o obrigue a começar a repetir-se. Daí a facilidade que esse homem tem de acreditar nas suas próprias conclusões.

O filósofo, ao contrário, força seu pensamento a alimentar-se de um material estranho e quase indigerível: fatos, percepções, dados — informações, enfim, que às vezes não têm sequer nomes pelos quais se possa pensá-las. Se o não-filósofo toma como premissas seus pensamentos anteriores ou frases aprendidas, o filósofo se obriga a admitir, como premissa, toda e qualquer coisa que chegue ao seu conhecimento, por mais inassimilável e esquisita que seja. A grande premissa do pensamento filosófico chama-se “o dado”.“Dado”, em filosofia, é o contrário de pensado. “Dado” é o que não fui eu que inventei. “Dado” é o que se impõe por si mesmo, sem que eu precise pensá-lo para que se dê. Tão funda é a obsessão dos filósofos pelo “dado”, que a maior parte deles se devotou à busca do Dado absoluto e primeiro, daquilo que se impusesse mesmo a um pensamento incapaz de pensá-lo. Do “primeiro motor” aristotélico ao “mundo da vida” de Husserl, passando pela “coisa em si” de Kant e pela “substância” de Spinoza, o que os filósofos buscaram foi sempre isto: algo que eles não pudessem inventar. Mesmo o objeto das ciências físicas é já um arranjo intelectual, um recorte operado pela razão no corpo do dado. Só os filósofos se interessam pelo que simplesmente está aí, pelo que o ser diz de si mesmo antes que alguém comece a falar dele. O filósofo é, pois, precisamente o contrário de um “pensador”. Platão chamava-o “amante de espetáculos”. Sim, o que o filósofo ama é aquilo que, vindo do espetáculo do ser, transcende infinitamente a clausura do pensar e do pensado. Por isto ele é também o amante da sabedoria: o caminho para a sabedoria só pode ser “para cima” e “para fora” — o eu pensante sacrifica-se, consente em deixar de ser o centro do mundo para ceder lugar à realidade que o transcende. “Ser objetivo é morrer um pouco”, dizia F. Schuon.

Isto se dá na mais mínima percepção sensível tanto quanto na suprema contemplação espiritual. O encontro com o Dado supremo toma a forma do “êxtase”. Foi preciso milênios de imbecilidade acumulada para que a palavra “êxtase” viesse a significar o arrebatamento de um cretino para dentro de uma caixinha de sonhos; e foi preciso chegar à última degradação para dar esse nome a uma droga incumbida de produzilos. Sonhos, afinal, são coisas pensadas, e é da prisão do pensado que o êxtase nos liberta. O êxtase é a plena presença do dado, é a suprema forma de realismo, aquela perfeita submissão do pensamento ao real, da qual, num plano mais modesto, Hegel deu exemplo ao contemplar por longo tempo uma grandiosa montanha e depois emitir o célebre comentário: “De fato, é assim.” Só o êxtase dá conhecimento. O resto é pensamento. Augusto Comte — quem diria? — intuiu isso de algum modo ao formular sua máxima: “régler le dédans par le dehors”, modelar o dentro pelo fora. Que outros procurassem ao contrário atrair o homem para “o interior”, não deve nos confundir. Quando Agostinho clama “noli foras ire”, esse “fora” que ele nos proíbe não é aquele a que nos referimos eu e Comte — o dado — mas sim “o mundo” no sentido bíblico do termo: a tagarelice ambiente que, por vir dos outros e ser tão infindavelmente repetida, nos dá a ilusão de ser por sua vez dado e realidade. É o pensamento coletivo que encobre o dado e em seguida nos consola de nossa impotência cognitiva infundindo-nos a ilusão de “fazer história”, de “criar um mundo” com os nossos pensamentos. Agostinho convida-nos a voltarnos da embriaguez do pensado para a autenticidade do ser espiritual, tão “externo” ao pensamento quanto a montanha de Hegel.

Pensar? Que de pensar morresse um burro, nada mais banal. O lamentável é que tantos “vivam” disso, e, não passando de “pensadores”, se arroguem — ou recebam de outros burros — o título de filósofos.
https://olavodecarvalho.org/os-pensadores-e-o-extase/

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AS MENTIRAS EM QUE ACREDITAMOS | Entrevista com Jeffrey Nyquist  https://revistaesmeril.com.br/as-mentiras-em-que-acreditamos-entrevista-com-jeffrey-nyquist/

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OLAVO X DUGIN - Platão e Aristóteles e a Realidade objetiva https://youtu.be/ZpjwJ_jRpMo?t=5077

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Tomás de Aquino - porque não sigo ele! - Olavo de Carvalho
https://youtu.be/lwaDrZ5N6S4

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Platão e seu fetiche, Santo Agostinho e Eric Voegelin - Olavo de Carvalho
https://youtu.be/Xy_XDDzN2mo

 

 

"PERCEPÇÃO PASSIVA é tudo" https://youtu.be/NsSE0rnMpTQ?t=1530

Aluno - "Às vezes me acontece, ao ler alguma coisa, ao ouvir o senhor, compreender algo que eu já havia percebido de maneira difusa, imprecisa"
Olavo - Mas é precisamente disso que eu estou falando. Se você percebeu de maneira difusa e imprecisa não é porque é de maneira difusa e imprecisa, é porque você não prestou atenção suficiente naquilo que você mesmo estava percebendo. Então, vamos dizer, a única diferença que tem entre o aluno que tá começando agora e eu comecei antes é isso: eu estou observando essas coisas em mim mesmo há mais de 40 anos. Então, eu quando percebo alguma coisa de maneira vaga e difusa, eu não saio dali. Eu volto e volto e volto e volto e volto até saber exatamente o que foi que eu percebi. Tá entendendo? E deixo para exercer a análise crítica muito tempo depois. É isso que eu explico no texto da contemplação amorosa e em outros textos do mesmo teor, onde eu to dizendo que a percepção passiva é tudo. Ela é tudo, o resto é ... vamos dizer, fora disto só existe o que se chama atividade mental, a criação mental do ser humano. Mas se a nossa atividade de estudo é voltada, não para ideias ou palavras, mas para realidade da vida mesmo, então é claro que nós vamos ter que voltar a essas percepções até que elas nos digam, até que a linguagem adequada para falar delas apareça delas mesmas e você, evidentemente conforme o talento pessoal de cada um, isso pode tomar a forma digamos de uma expressão literária. Então, você vai ter uma espécie de matéria prima, uma expressão imediata da experiência. E pode ter, vamos dizer, uma exposição de segundo grau, que não está interessada tanto em expor a experiência como tal, mas em tirar conclusões sobre elas que ser possam ser úteis, que é exatamente o que eu tô fazendo. Então note bem, não diga que você tinha percebido de maneira difusa, diga o seguinte: eu não me lembro direito, eu percebi isso, mas eu não lembro direito. Parece difusa agora, mas se você voltar lá, você vai ver que aquilo era muito claro. Apenas você tem dois níveis de atenção, você tem esse nível contínuo, que é aquele onde funciona a percepção e imaginação, e tem o descontínuo que é o da atenção reflexiva, que reflete critica etc. Esta é descontínua, o primeiro é muito mais eficiente muito mais exato e muito mais
claro do que o segundo. nós achamos que o segundo é mais claro por quê? Porque nós temos o domínio mental dele, nós dominamos ali, embora seja descontínuo fomos nós mesmos que inventamos aqueles pensamentos. No primeiro no caso, você não tem domínio por quê? Porque você está percebendo a própria realidade e não foi você que inventou a realidade. Então a gente confunde esta sensação de poder e domínio com a clareza e nitidez. E não é. Estão entendendo? Isso aqui é básico, básico. As coisas mais importantes da vida você já percebeu em algum momento, você já sabe só que você sabe naquele nível contínuo que a sua atenção reflexiva, por ser descontínua, não consegue captar.  Então o que que tem que fazer? Tem que domar essa atenção reflexiva para que ela aprenda a, humildemente, a aceitar os dados daquilo que já foi percebido. 

 

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