Dostoievsky publicou "OS DEMÔNIOS" em capítulos, num jornal para todos lerem, mais de 40 anos antes da revolução comunista tornar a Rússia num totalitarismo de esquerda. Mas, assim como Saint Germain, que tentou evitar a carnificina na França e não foi acreditado, parece que Dostoievsky não foi levado a sério. O que lembra muito nossa época...
Seguem excertos da obra:
— Pelo que compreendi — e era impossível não o
compreender — o senhor, uma vez, de início, e outra vez mais tarde falou com
bastante eloqüência — embora por demais teóricamente — da vasta rede que cobre
a Rússia inteira e da qual nosso grupo é uma das malhas. Cada um desses grupos,
fazem prosélitos e se ramificando até ao infinito, por meio de uma propaganda
sistemática, deve sabotar o poder das autoridades locais, espalhar a desordem
pelo campo, provocar escândalo, estimular o cinismo e a incredulidade, suscitar
o desejo de um melhor destino, e enfim, recorrer aos incêndios como a um método
eminentemente popular para, no momento oportuno, mergulhar o país no desespêro.
Serão essas exatamente as suas palavras? Procurei gravá-las todas. Não é esse o
programa que nos comunicou como delegado de um tal de Comitê Central que nós
ainda não conhecemos e que nos parece quase fantástico?
*
Acontecia que ele
sabia de muito; e assim, conseguiu mudar
a feição do, caso todo: a tragédia de Chátov e de Kiríllov, o incêndio, a morte
irmãos Lebiádkin, — tudo isso passou para
o segundo plano, cedendo lugar a Piótr
Stepánovitch, à sociedade secreta, à organização, à rêde. Quando lhe fizeram
esta pergunta: Por que tantos crimes, esses escândalos, essas misérias? — Liámchin imediatamente retrucou: — Afim de
abalar o govêrno nas suas bases, a fim de apressar a decomposição da sociedade,
a fim de desanimar todos e inocular nos espíritos a desordem. Depois nos
teríamos apoderado, dessa sociedade caótica, doente, abandonada, cínica e
cética, mas que aspira submeter-se a
qualquer idéia diretriz; teríamos
brandido o estandarte da revolta, apoiando-nos na rede de grupos de
Cinco, que por seu lado agiriam promovendo a propaganda, estudando os pontos
fracos do adversário e os meios práticos de o combater.
Declarou ele,
afinal, que aquilo que se registrara entre nós não passava duma tentativa
inicial de desordem sistemática, de certo modo representava o programa que
deveriam seguir os grupos fundados por Piótr Stepánovitch. Pelo menos era essa
a sua opinião — dêle, Liámchin. E insistiu em que "fossem levadas em conta
as suas palavras, a franqueza, a precisão com que expusera todo o caso, o que
bem mostrava quão grandes serviços poderia prestar às autoridades".
Anta a pergunta
direta: "Há muitos grupos de Cinco, na Rússia?" respondeu que eram
inúmeros esses grupos e cobriam com sua rede a nação inteira. Não apresentou
nenhuma prova apoiando suas declarações, mas creio que era sincero quando assim
falava. Limitou-se a expor o programa da sociedade, impresso no estrangeiro, e
um projeto de desenvolvimento da sua ação, escrito pelo punho de Piótr
Stepánovitch. Verificou-se que, falando em "abalar as bases",
Liámchin citara textualmente um trecho desse documento, sem omitir um ponto ou
uma vírgula — coisa entretanto que não o impedira de reivindicar como sua essa
idéia .
— Hum! se a Babilônia européia ruir, será
realmente uma grande catástrofe. (Estou de acôrdo com os senhores, a respeito —
embora creia que ela há de durar tanto quanto eu. Enquanto que aqui na Rússia,
afinal de contas, que é que pode ruir?... Não assistiremos a um desabar de
pedras, porque tudo se há de liquefazer : será um dilúvio de lama. A Santa
Rússia é absolutamente incapaz de oferecer qualquer resistência a quem quer que
seja. Graças ao deus russo, o povo ainda se mantém mais ou menos sossegado ; mas
segundo as últimas notícias, o deus russo não é suficientemente sólido e a
libertação dos servos quase o derruba; pelo menos, abalou-o de rijo. E além
disso há as estradas de ferro, há os senhores... E quanto ao deus russo,
absolutamente não creio nele.
— E no deus europeu?
— Não creio em deus nenhum. Fui caluniado
perante a mocidade russa. Sempre estive de coração ao seu lado. Mostraram os
manifestos que são distribuídos por cá. São documentos que deixam os indivíduos
perplexos, porque o seu tom assusta as almas; mas todo o mundo
inconscientemente está convencido do poder de ação deles. Já há muito tempo que
tudo vai deslizando para o abismo, e já há muito tempo é sabido que ninguém se
poderá agarrar a nada. E tenho certeza absoluta do êxito dessa propaganda,
porque sei que a Rússia é por excelência o país onde tudo pode acontecer, sem
encontrar a mínima resistência. Compreendo muitíssimo bem por que os russos que
possuem alguns bens transpõem as fronteiras, em número considerável, cada ano.
É simplesmente o instinto que os guia. Quando um navio vai afundar, os ratos
são os primeiros que o abandonam. A Santa Rússia é um país de casas de madeira,
um país miserável e... e perigoso ... um país de mendigos: mendigos vaidosos
nas camadas superiores, mas cuja imensa maioria vive nas isbás, de paredes
inseguras. Ficariam satisfeitos com qualquer saída — e bastaria que essa saída
fôsse indicada. Só o govêrno ainda quer resistir, mas maneja o gládio a torto e
a direito e fere justamente os seus. Aqui tudo é julgado e condenado; a Rússia,
tal como é, não tem futuro. Tornei-me alemão, e honro-me com isso.
— 0 senhor começou falando nas proclamações.
Diga-me o que pensa a respeito delas.
— Todo o mundo está com medo; portanto, elas
execem grande ação. Descobrem francamente a mentira, e demonstram que, entre
nós, nada existe a que nos agarremos, nada em nos amparemos. Esses manifestos
falam alto, quando todos se calam. Sua fôrça (não obstante a sua forma) é a
audácia inaudita com que encaram de frente a verdade. E essa faculdade de
encarar de frente a verdade pertence apenas à atual geração russa. Não, na
Europa ainda não são tão atrevidos: o edifício europeu é feito de pedra, e
ainda tem onde se arrimar. Pelo que vejo, e tanto quanto posso julgar, a idéia
revolucionária russa consiste essencialmente na negação da honra. E agrada-me
ver êsse pensamento expresso com tanta coragem, com tanta ousadia. Não, na
Europa não se compreenderia ainda tal idéia, e entre nós, porém, é exatamente
sôbre ela que todos se hão de se precipitar. Para a Rússia, a honra não passa
dum fardo inútil, tem sido assim em todos os tempos, no decorrer de toda a sua
história. Será portanto fácil seduzi-la, e arrastá-la proclamando o
"direito à desonra". Pertenço à velha geração e confesso que ainda
sou partidário da honra; mas isso é apenas um hábito. Aferro-me ainda às velhas
fórmulas; admitamos que isso seja uma fraqueza de minha parte: é mister porém
morrer com os princípios aos quais nos apegamos a vida inteira...
— Como foi então que você se arranjou para
espalhar ai, os manifestos?
— Na reunião aonde vamos, não haverá senão
quatro filiados. Os outros estão à espera, espionam-se reciprocamente e me
relatam tudo. Pode-se contar com êles. É uma matéria bruta que é mister
organizar, e depois veremos. Ademais, foi você próprio quem organizou os
estatutos ; é pois inútil dar-lhe explicações.
— E então o trabalho anda? Poucas
dificuldades?
— Se anda! Não poderia andar melhor ! Vou
fazê-lo rir : o melhor método de ação é o uniforme. Não há nada mais poderoso
que o uniforme. Invento de propósito títulos e funções : instituo secretários,
emissários secretos, tesoureiros, presidentes, registradores e adjuntos. Isto
agrada muitíssimo aos camaradas que aceitam os cargos, honradíssimos. Depois, é
claro, vem ainda o sentimentalismo. Você sabe que o êxito do socialismo é em
grande parte devido ao sentimentalismo. A desgraça é que às vezes a gente se vê
a braços com um subtenente hidrófobo, que se põe a morder. Em seguida, estão os
simples canalhas; bons sujeitos, aliás, que podem vir a ser utilíssimos ; mas
perde-se com eles muito tempo, porque é preciso vigiá-los bem. Enfim, a fôrça
principal, o cimento que liga tudo, é o temor da opinião. Que fôrça que isso é!
Vivo perguntando a mim próprio a quem (devemos nós ser gratos por ter tão
habilmente manobrado os espíritos ; ninguém tem mais uma idéia própria, aqui.
Eles teriam vergonha de pensar por si próprios.
— Se é assim, por que você se afadiga tanto?
— Como deixar de se aproveitar da situação?
Como não nos apoderarmos daquele que nos estende os braços? Será que realmente
você não acredita na vitória? Tem fé, mas o que lhe faz falta é a vontade de
agir. Sim, é justamente com gente dessa espécie que é possível vencer. Sou eu
que lhe digo : atiram-se ao fogo, se for necessário ; bastar-me-á, para isso,
censurar-lhes a tibieza das suas convicções. Os imbecis me acusam porque
enganei todo o mundo com o meu "Comitê Central" e suas "infinitas
ramificações" ; você mesmo fez-me um dia essa censura. Pois não enganei
ninguém: o Comitê Central somos você e eu; quanto às ramificações, teremos
tantas quantas quisermos.
— Mas só a ralé?
— É o material. Serve para qualquer coisa.
*
— Como me consagrei inteiramente ao estudo da
organização que no futuro deverá substituir a nossa, continuou Chigalióv —
cheguei à convicção de que todos os criadores de sistemas sociais, desde os
tempos mais recuados até nossos dias, foram sonhadores, visionários, tolos, que
se contradiziam a si próprios e nada entendiam de ciências naturais, nem desse
estranho animal que se chama o homem. Platão, Rousseau, Fourier, não passam da
colunas de alumínio; servem apenas para pardais, e não para homens. E como as
formas sociais do futuro devem ser fixadas precisamente agora, e já que afinal
estamos decididos a iniciar a ação, sem mais delongas, proponho o meu sistema
de organização mundial. Ei-lo — declarou batendo no caderno. Queria expor-lhes
o meu livro tão sucintamente quanto fosse possível ; mas vejo que me será
preciso acrescentar algumas explicações verbais. Minha exposição exigirá pelo
menos dez reuniões, de acôrdo com o número de capítulos do livro. (Houve
algumas risadas.) Ademais, devo preveni-los de que o meu sistema ainda não está
concluído. (Novos risos.) Embrulhei-me com meus próprios dados e a conclusão
está em contradição direta com a idéia fundamental do sistema. Partindo da
liberdade ilimitada cheguei ao despotismo ilimitado. Faço notar, entretanto,
que para o problema social, não pode haver outra solução senão a minha.
(...)
— O Sr. Chigalióv dedicou-se inteiramente à
sua tarefa e ademais é excessivamente modesto. Conheço o seu livro. Para
resolver definitivamente a questão social, propõe êle que se divida a sociedade
em duas partes desiguais. A um décimo será outorgada liberdade absoluta, e
autoridade ilimitada sobre os outros nove décimos que deverão perder a
personalidade, convertendo-se num rebanho; mantidos numa submissão sem limites,
passando por uma série de transformações, atingirão o estado de inocência
primitiva, qualquer coisa como o Éden primitivo — sendo embora obrigados ao
trabalho. As medidas preconizadas pelo autor a fim de despojar de sua vontade
os nove décimos da humanidade e transformá-los em rebanho, por meio da
educação, são notabilíssimas; baseadas nos dados das ciências naturais, são
inteiramente lógicas. Pode-se deixar de aceitar certas conclusões, mas é
impossível negar a inteligência e os conhecimentos do autor. É lamentável que,
em vista das circunstâncias, não lhe possamos conceder os dez serões que ele
exige, porque decerto ouviríamos coisas interessantíssimas.
— Será possível que o senhor leve a sério esse
homem que, sem saber o que fazer da humanidade, lhe reduz nove décimos à
escravidão? perguntou ao coxo a Senhora Virguínskaia, inquieta. Já há muito
tempo que ele me parecia suspeito.
— E além disso, trabalhar para aristocratas e
lhes prestar obediência como se fossem deuses, é uma covardia, disse a
estudante indignada.
— O que proponho não é nenhuma covardia — é o
para o paraíso terrestre, e não pode haver nenhum outro, concluiu Chigalióv,
autoritário.
— Pois eu, bradou Liámchin, em vez de
organizar o paraíso terrestre, se não soubesse o que fazer dos restantes nove
décimos da humanidade, dava cabo dêles, e só deixaria viver um punhado de
indivíduos instruídos, capazes de viver pacificamente, de acôrdo com os
princípios científicos.
— Só um palhaço é capaz de falar assim!
protestou a rapariga.
— Ele é mesmo um palhaço, mas útil, murmurou a
Senhora Virguínskaia ao ouvido da estudante.
— Talvez fosse realmente essa a melhor solução
do problema interveio Chigalióv, volvendo-se ràpidamente para Liámchí Talvez
não saiba que acaba de dizer uma coisa profundíssima senhor palhaço. Mas como
sua idéia é quase irrealizável, temos que nos contentar com o paraíso terrestre
— já que é mister chamá-lo assim.
— Quanta asneira! deixou escapar Verkhovénski
malgrado seu; não levantara a cabeça e continuava a cortar as unhas,
indiferente.
— Asneiras, por quê? retrucou imediatamente o
coxo, como se não esperasse senão um momento propício a fim de atacar Piótr
Stepánovitch. Asneiras, por quê? O amor do Sr. Chigalióv pela humanidade é um
pouco fanático; mas lembre-se de que Fourier, e sobretudo Cabet, e até mesmo
Proudhon, mostraram-se partidários de certas soluções extremamente despóticas e
à primeira vista, fantasistas. E o Sr. Chigalióv é talvez mais razoável que
eles. Garanto aos senhores que depois da leitura do livro de Chigalióv, é quase
impossível deixar de admitir algumas das suas idéias. Ele afastou-se do
realismo menos talvez que os outros, e o seu paraíso terrestre é quase um
paraíso autêntico — o paraíso com que sonham os homens, depois de o perderem —
se é que jamais o possuíram.
— Bem que eu previa que iria ouvir uma coisa
mais ora menos dêsse gênero, resmungou novamente Verkhovénskii.
— Com licença! gritou o coxo cada vez mais
furioso. Atualmente tornou-se quase uma necessidade para os indivíduos que
pensam discutir a organização futura da humanidade. Durante a vida inteira,
Herzen não cuidou senão disso e sei de fonte e limpa que Bielínskii passava
noites inteiras a discutir a questão social com os amigos, resolvendo os mínimos
pormenores — os detalhes de "cozinha", por assim dizer, da sociedade
futura.
— Houve até gente
que ficou doida, observou o major.
— E discutindo, é
possível chegar-se a um resultado qualquer, coisa melhor do que ficar calado,
fazendo-se de ditador, disse Lipútin em voz sibilante, arriscando-se afinal a
atacar.
— Quando falei
que isso tudo eram asneiras, não visava absolutamente Chigalióv, explicou com
displicência Verkhovenskii. Escutem, senhores, prosseguiu ele, erguendo um
pouco os olhos — na minha opinião, todos esses livros, Fourier, Cabet, "o
direito ao trabalho", as idéias de Chigalióv, são idênticos aos milhares
de romances que diàriamente aparecem: um passatempo estético! Compreendo que,
entediados, nesta cidadezinha, os senhores se distraiam rabiscando papel.
— Com licença! tornou o coxo agitando-se na
cadeira. Nós somos apenas uns provincianos, é verdade, e por conseqüência,
dignos de dó; mas, não nos consta que haja aparecido no mundo nada de
extraordinàriamente sensacional, e portanto não vale a pena lamentar a nossa
ignorância. Certos manifestos, de origem estrangeira, convidam-nos a reunir os
nossos esforços com o fito de tudo destruir — pois que, faça-se o que se fizer,
a fim de curar a sociedade, nada se conseguirá; e cortando-se cem milhões de
cabeças, simplifica-se a situação e pode-se transpor o fosso. Idéia excelente,
decerto, mas tão irrealizável quanto a de Chigalióv, que o senhor atira fora
com tanto desdém !
— Tudo isso está muito bem, mas não vim cá
discutir, articulou descuidosamente Piótr Stepánovitch; e aproximou de si a
vela, como se não se apercebesse da gafe que cometera.
— É lamentável, é lamentabilíssimo que o
senhor não tenha vindo cá para discutir; e é pena também que esteja tão ocupado
agora com a sua toalete.
— Que lhe importa a minha toalete?
— É tão difícil cortar cem milhões de cabeças
quanto modificar o mundo pela propaganda; talvez o seja ainda mais difícil,
sobretudo na Rússia, observou Lipútin, novamente se arriscando.
— Todas as esperanças repousam agora na
Rússia, disse um dos oficiais.
— Sim, parece que colocam nela grandes
esperanças, replicou o coxo. Nós sabemos que um dedo misterioso apontou para a
nossa linda pátria como o país mais capaz entre todos de realizar essa grande
obra. Mas eis um reparo meu : mesmo que o problema social seja gradualmente
resolvido pela propaganda, sempre hei de ganhar qualquer coisa: primeiro a
possibilidade de conversar agradavelmente e segundo a recompensa com que o
futuro govêrno reconhecerá os serviços que terei prestado à causa social. Mas
no caso de uma solução imediata, se se corta um milhão de cabeças,
pessoalmente, que hei de ganhar? Põe-se ti gente a fazer propaganda e
arrisca-se a que nos cortem a língua.
— A sua será
cortada, com toda certeza, disse Verkhovénskii.
— Está vendo, então. E como nas mais
favoráveis circunstâncias, os senhores não poderão realizar esse massacre em
menos de cinqüenta anos — em trinta, digamos — (pois não se trata de carneiros,
e talvez as vítimas não se mostrem dóceis), não seria melhor arrumar a bagagem,
e ir viver longe, em alguma ilha sossegada, e acabar a vida em paz? Creia-me! e
deu um murro na mesa
— sua propaganda
fará apenas estimular a emigração e mais nada.
Estava
triunfante. Era uma das maiores cabeças da província. Lipútin sorria, com ar de
acôrdo. Virguínskii parecia bastante, abatido; os outros acompanhavam a
discussão com enorme interesse, especialmente as senhoras e os oficiais. Todos
compreendiam que o degolado dos cem milhões de cabeças estava encurralado;
esperava-se agora o fim.
— Devo dizer que você acaba de enunciar uma
idéia bastante justa, falou Verkhovénskii em tom ainda mais indiferente, o até
mesmo com certo tédio. Emigrar — é excelente idéia. entretanto, a despeito das
desvantagens evidentes que pressente, os soldados que abraçam a nossa causa
cada dia são maio numerosos; dispensaremos os senhores. Trata-se de uma nova
religião que vem substituir a antiga, trata-se de coisa importante, e é por
isso que o número dos soldados cresce. Mas os senhores, podem emigrar. E, sabe,
aconselho-o a ir residir não numa ilha sossegada, mas em Dresde. Em primeiro
lugar, porque Dresde jamais assistiu a uma epidemia; e, como homem culto, o
senhor provavelmente receia a morte ; depois, não fica longe da fronteira
russa, de forma que facilmente lhe poderão ser enviados rendimentos da sua
pátria adorada ; Dresde é cheia do que se chama tesouros artísticos; e o senhor
é um esteta, um ex-professor de Literatura, creio eu. Enfim, terá ao alcance da
mão uma verdadeira Suíça em miniatura e isso lhe servirá à inspiração poética,
porque decerto faz versos. Em resumo : um tesouro numa tabaqueira.
Houve vários
movimentos, os oficiais se agitaram. Mais um instante, e todos se poriam a
falar ao mesmo tempo; o coxo entretanto mordeu a isca :
— Não, talvez não abandonemos a Causa Comum!
Resta ver...
— Como? Então aceitaria entrar para o nosso
grupo, se lho propusesse? disse de
repente Verkhovénskii depondo na mesa a tesoura.
Todos
estremeceram. A esfinge bruscamente se desmascarou. Atrevera-se até a falar no
"grupo".
— Todo aquêle que se considera um homem de
bem, não se pode recusar à sua tarefa, respondeu constrangido o coxo mas...
— Desculpe, agora
não se trata de "mas", interrompeu Stepánovitch em tom imperioso.
Declaro a todos, senhores, que preciso de uma resposta clara e decisiva.
Compreendo perfeitamente que vindo aqui, depois de os reunir, devo aos
presentes uma explicação (mais uma revelação inesperada), porém é-me impossível
lhes dar essa explicação enquanto ignorar o estado de espírito de cada um.
Deixando de lado as palavras inúteis — porque não se pode mais discorrer
durante trinta anos, como já há trinta anos se faz — pergunto-lhes o que
preferem : o método lento, isto é, os romances sociais e as regras para o
destino da humanidade gravadas no papel com mil anos de adiantamento, enquanto
o despotismo comerá os bons bocados que nos caem da boca e que recusamos, ou
uma solução rápida, qualquer que seja ela, que nos desatará as mãos e permitirá
à humanidade organizar-se com toda a liberdade, não no papel, mas de fato?
"Cem milhões de cabeças !" gritam. Não é senão uma metáfora, talvez.
E mesmo que não fosse metáfora? Enquanto se sonha, enquanto se rabisca papel,
não serão cem milhões, mas quinhentos milhões que o despotismo há de devorar.
Observem também que quaisquer que sejam as receitas empregadas, não hão de
curar o incurável; pelo contrário, ele acabará por nos infeccionar a todos e
por contaminar as fôrças jovens com que ainda se poderia contar ; seria a perda
de todos nós. Concordo que é agradável emitir palavras liberais e eloqüentes,
enquanto a ação apresenta certos riscos... Ademais, não sou ouvidor; vim cá a
fim de fazer uma comunicação, de forma que peço ao distinto auditório que declare
simplesmente, sem necessidade de votação, que é que prefere : patinhar no
pântano, em passo de tartaruga, ou atravessá-lo a todo vapor.
— Eu sou pela travessia a todo vapor ! bradou
entusiasmado o ginasiano.
— Eu também, declarou Liámchin.
— A escolha não apresenta dúvidas, resmungou
um dos oficiais, depois outro, depois um terceiro. O que mais impressionava a
assistência é que Verkhovénskii tinha uma comunicação a fazer e prometera
falar.
- Senhores, vejo
que quase todos são partidários da solução preconizada pelos manifestos,
constatou Verkhovénskii, percorreu com o olhar a assembléia.
Sim, todos,
todos! gritou a maioria de vozes.
— Confesso que me
inclino para uma solução mais humana, interveio o major; mas obedeço à maioria.
— Pelo que
parece, o senhor também não faz oposição? perguntou Verkhovénskii ao coxo.
— Não, é que eu..
. respondeu o outro, corando. Se me alio à decisão da assembléia é unicamente a
fim de não perturbar...
— O projeto dêle
é notável, tornou Verkhovénskii. Estabelece como regra a espionagem. Segundo
ele, todos os membros da mocidade se espionam mutuamente, e são obrigados a
relatar tudo que descobrem. Cada um pertence a todos e todos pertencem a cada
um. Todos os homens são escravos e iguais na escravidão; nos casos graves,
pode-se recorrer à calúnia e ao homicídio ; enfim, o principal é que todos são
iguais. Antes de tudo, rebaixa-se o nível da instrução, das ciências e dos
talentos. O nível elevado da ciência e do talento, só se obtém graças a
inteligências superiores — portanto nada de inteligências superiores. Os homens
de talento apoderam-se sempre do poder e tornam-se déspotas. Não podem agir de
outra maneira; sempre fizeram mais mal que bem. É mister bani-los ou matá-los.
Cícero terá a língua cortada, Copérnico os olhos furados, Shakespeare será
lapidado. Isso é que é o chigaliovismo. Ah, ah, ah ! Está admirado? Eu sou
partidário de Chigalióv.
Stavróguin
apertava o passo a fim de chegar em casa o mais depressa possível. "Se
este homem está bêbedo, pensava ele, onde foi que se embriagou? Com o conhaque
que tomou ainda agora?"
— Escute,
Stavróguin, é uma excelente idéia nivelar as montanhas — é idéia que nada tem
de ridícula. Sou partidário de Chigalióv. Não há nenhuma necessidade de
instrução, chega de ciência! Os materiais de que já dispomos nos bastarão
durante mil anos; o que é importante é estabelecer a obediência. A sêde de
instrução já é uma sêde aristocrática. Mal é permitida a instalação da família
e do amor, imediatamente nasce o desejo de propriedade. Haveremos de matar esse
desejo: desenvolveremos a embriaguez, a calúnia, a delação ; mergulharemos o
Homem numa devassidão inaudita, destruiremos no ôvo qualquer gênio que se
esteja formando. Todos serão reduzidos ao denominador comum: igualdade
absoluta. "Conhecemos o nosso ofício, somos homens de bem — e é só do que
precisamos." Eis a resposta dada recentemente pelos operários ingleses.
"Só o necessário é necessário" — deve ser esta, doravante, a divisão
da Humanidade. De tempos em tempos, será preciso conceder-lhe algumas
convulsões, mas nós, chefes, é que as forneceremos. Os escravos devem ter
senhores. Obediência completa, despersonalização absoluta. De trinta em trinta
anos, entretanto, Chigalióv autoriza algumas convulsões ; e então, todos se
atirarão uns contra os outros e se hão de devorar, reciprocamente — com certo
limite, contudo — apenas para combater o tédio. 0 tédio é um sentimento
aristocrático. A sociedade de Chigalióv não conhecerá mais os desejos. Para
nós, o desejo e o sofrimento, e para os escravos, o chigaliovismo.
— Escute,
começaremos provocando agitação — prosseguiu Verkhovénskii com voz arquejante,
precipitada, e puxando a todo momento pela manga do casaco de Stavróguin. — Já
lhe disse, penetraremos no âmago do povo. Sabe que já somos terrivelmente
fortes. Os nossos não são unicamente aqueles que matam e incendeiam, nem os que
manejam o revólver à maneira clássica, ou os furiosos que se põem a morder.
Esses só fazem atrapalhar. Não tolero nada sem disciplina. Sou um bandido e não
um socialista — ah, ah, ah! Escute, tenho a lista de todos: o mestre-escola que
ensina as crianças a zombar de Deus e de seu berço já é um dos nossos. O advogado
que defende um assassino instruído, afirmando que o réu tinha mais cultura que
suas vítimas e se sentia na obrigação de matar a fim de obter dinheiro, é um
dos nossos. Os colegiais que matam um mujique com o fito de experimentarem
emoções fortes, são dos nossos. Os jurados que absolvem criminosos, quaisquer
que sejam, são dos nossos. 0 promotor que treme de medo ante o pensamento de
que não se mostra suficientemente liberal, é dos nossos. Some a esses os
funcionários, os escritores; muitos dentre eles estão conosco e nem sequer o
desconfiam! Por outro lado, é absoluta a docilidade dos estudantes e dos tolos;
quanto aos mestres, vivem cheios de bílis; por toda parte só se vêem vaidade e
apetites bestiais inauditos ... Será que você alcança a extensão do auxílio que
nos podem trazer as idéias feitas? Quando saí daqui, grassava por toda a Rússia
a tese de Littré e pretendia-se que o crime era uma anomalia mental. Volto à
pátria e verifico que o crime já não é mais uma anomalia, mas uma prova de bom
senso, quase um dever moral, ou pelo menos um generoso protesto. "Como é
que um homem culto pode deixar de matar, se tem necessidade de dinheiro?"
E isso, contudo, é apenas um comêço. Já o deus russo teve que ceder ante o
vodca barato. Bebe o povo, bebem as mães, bebem as crianças, andam desertas as
igrejas. E que ouvimos nos nossos tribunais de aldeia? "Uma vasilha de
vodca ou duzentos açoites!" Dê apenas a esta geração o tempo de crescer! É
pena que tenhamos tanta pressa, pois se pudéssemos esperar, ficariam ainda mais
ébrios. É pena também que não haja proletariado! Mas há de haver, há de haver!
Caminhamos para isso...
— É pena também que nos tenhamos tornado tão
tolos! resmungou Stavróguin voltando a caminhar.
— Escute! Vi um menino de seis anos trazer para
casa mãe completamente bêbeda, que o cobria dos mais sórdidos palavrões... Acha
que isso me deu prazer? Quando for nosso o poder, talvez possamos curá-los...
Se for preciso, recorreremos até ao ascetismo... Mas, por ora, temos
necessidade de uma ou duas gerações de libertinos; temos necessidade de uma
corrupção inaudita, ignóbil, que transforme o homem num inseto imundo, covarde,
cruel e egoísta. Disso é que carecemos. E ao mesmo tempo, dar-lhes-emos um
pouco de "sangue fresco", a fim de que tomem gôsto ao sangue. Por que
ri? Não me estou contradizendo. Não contradigo senão aos filantropos e a
Chigalióv.
(...)
— Ah, se tivéssemos tempo! Nossa única
infelicidade é a falta de tempo. Proclamaríamos a destruição... por que, por
que é essa idéia tão fascinante? Sim, é mister às vezes desentorpecer os
membros ! Atearemos incêndios ! ... Espalharemos lendas. . . E para esse fim,
qualquer grupo ínfimo nos será utilíssimo. Hei de descobrir para você, nesses
grupos, entusiastas que premirão o gatilho com alegria e que se considerarão
honradíssimos por serem os primeiros. E então começará a confusão. Será um
rodamoinho como jamais o mundo assistiu... Uma névoa espessa descerá sôbre a
Rússia... A terra há de chorar seus antigos deuses... E então, faremos aparecer
— quem?
— Quem?
— O Czaréviche Iván.
— Como?
— O Czaréviche Iván. Você, você!
O MUNDO DOSTOIEVSKIANO
ROBERTO ALVIM CORREIA
ATÉ pouco tempo traduziu-se em vários países o substantivo do título Os Demônios por Possessos — o que não deixa de surpreender. A confusão, contudo, talvez seja possível numa língua em que são sinônimos, segundo dizem, palavras quais criminoso e infeliz, cuja associação repercutia fundo em Dostoiévski, para quem ser criminoso era ser vítima do demônio. O mal tinha para ele realidade na medida em que o demônio faz de uma criatura humana um possesso. Satã entra num homem como ladrões pestíferos entram numa casa. A história de Os Demônios é a história desses ladrões, desses possessos. É o que explica uma das principais personagens, Stepán Trofímovitch, que, na hora da morte, comenta o texto de S. Lucas, citado como epígrafe do romance. Vê o moribundo, no episódio do Evangelho, uma imagem da Rússia da segunda parte do século XIX. Stepán Trofímovitch fala aqui em nome de Dostoiévski que denunciava no Socialismo niilista a ação de possessos...
3. Exprime-se da seguinte maneira: "Minha amiga, disse Stepán Trofímovitch, comovidíssimo, savez-vous, essa passagem admirável e... extraordinária sempre foi para mim uma pedra no meio do caminho... dans ce livre... e por isso a guardei de memória desde a infância. Mas uma idéia me ocorreu, une comparaison. Ocorrem- me muitas idéias agora. Veja, é exatamente como na nossa Rússia. Esses demônios que saem do doente para entrar nos porcos, são todas as chagas, todos os miasmas, todas as imundícies, todos os demônios pequenos e grandes, que no decorrer dos séculos se acumularam na nossa querida e imensa doente, na nossa Rússia! Oui, cette Russie que l'aimais toujours. Mas um pensamento sublime, uma sublime vontade lá de cima descerão sôbre ela como desceram sôbre esse endemoniado. E ela se desembaraçará de todas as impurezas, de todas as podridões — que espontaneamente hão de pedir morada nos porcos. Talvez já nêles hajam entrado. Somos nós — nós e êles — e Petrúcha... et les autres aves lui — e eu talvez em primeiro lugar, eu à frente. Como loucos furiosos, atirar-nos-emos do alto do rochedo até ao mar, e pereceremos todos. Melhor, porque só servimos para isso. O doente, porém, será curado e 'assentar-se-á aos pés de Jesus...' e todos o encararão com espanto... Minha cara, vous comprendrez après... Noas compren- drons ensemble."
O epíteto, que virou nome, é incontestavelmente forte, podendo até parecer excessivo. Acolheram-no gracejos e imprecações, sem que por isso revolucionários e outros suprimissem a significação do vocábulo, que afeta a questão do bem e do mal, de Deus e do demônio.
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E ainda como Pascal ele desconfia da razão unicamente raciocinante, mortal ao pretender substituir uma ordem transcendental por outra só imanente. Os Demônios descrevem a atmosfera de traição, de crime, de vergonha em que vivem conspiradores ateus que renegaram os princípios evangélicos. Já não dispõem mais de si mesmos, viram apenas instrumentos, quase sempre nocivos. Assim a humilhação cristã, uma das chaves do mundo dostoievskiano, transforma-se, quando não livremente aceita, num sentimento que avilta, asfixia, desagrega. E essa humilhação que tudo fere quando não liberta, n'Os Demônios envenena a pureza da fé no messianismo russo, no povo, cuja voz, como no adágio latino, se confunde com a voz de Deus. O povo, para Dostoiévski, tem uma alma, embora coletiva, assemelha-se a uma alma pessoal, por impunemente desprezada. Quem tenta diminuir-lhe o sentido religioso e salvador comete um crime, precisamente cometido em Os Demônios.
Desde a primeira vez que li CRIME E CASTIGO, o que mais me impressionou foi o fato de que alguém, como o personagem Raskólnikov, consiga crer que a racionalidade pode prever ou mesmo dar conta de Toda a Realidade. Que, no final das contas, todos os malévolos meios possam ser justificados e santificados se logicamente levarem ao almejado "Bem".
Houve um tempo que, em minha ignorância, considerei socialismo e comunismo como regimes políticos e como uma opção a mais para um governo. Mas agora, depois de colher outras informações e ligar alguns pontos, encaro-os como um movimento duradouro, nascido nas classes privilegiadas e intelectuais, planejado no estrangeiro, em sociedades secretas como a Maçonaria Illuminati, de índole expansionista, globalista, e intrinsecamente TOTALITARISTA, tanto na prática como na teoria. É uma face da revolução da Nova Ordem Mundial.
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ORVIL - TENTATIVAS DE TOMADA DE PODER
anarquismo
o regime comunista é uma braço do ocultismo, assim como o satanismo. são peças de uma mesma engrenagem. o mesmo regime foi o que mais matou pessoas.
ResponderExcluirOcultismo não tem nada haver com política, quem pratica ocultismo,busca conhecimento, só que bosta na cabeça, e nunca estudou sobre ocultismo ,fala essas asneiras...
ExcluirVc tem alguma fonte para citar para nós? Só vi poucos falando sobre isso. Um é o Nicholas Hagger, mesmo assim ele não diz claramente.
ResponderExcluirVocê entendeu tudo errado meu amigo! É incrível como você chegou a escrever essas coisas sobre essa magnífica obra de Dostoiévski.
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