O CAMINHO DA SERVIDÃO Friedrich August von Hayek
Livro em PDF:
A VERDADE NÃO EXISTE, A MENTIRA ÚTIL É A VERDADE - MARX, GRAMSCI E MAQUIAVEL
http://youtu.be/tbdKwNSS7gE
Lénin, «A mentira é sagrada e o engano será a nossa principal arma.»
Segue um capítulo do livro
O CAMINHO DA SERVIDÃO
O FIM DA VERDADE
É significativo que em todos os
países a estatização do
pensamento
tenha sempre caminhado pari
passu
com a estatização da indústria.
E. H. Carr
O modo mais eficaz de fazer com que
todos sirvam ao sistema único de objetivos visado pelo plano social é fazer com
que todos acreditem nesses objetivos. Para que um sistema totalitário funcione
com eficiência, não basta que todos sejam obrigados a trabalhar para os mesmos
fins: é essencial que o povo passe a considerálos seus fins pessoais. Embora
seja necessário escolher as idéias e impô-las ao povo, elas devem converter-se nas idéias do
povo, num credo aceito por todos que leve os indivíduos, tanto quanto possível,
a agir espontaneamente do modo desejado pelo planejador. Se o sentimento de
opressão nos países totalitários é, em geral, bem menos agudo do que muitos
imaginam nos países liberais, é porque os governos totalitários conseguem em
grande parte fazer o povo pensar como eles querem. Isto, evidentemente, é
realizado pelas várias formas de propaganda.
Sua técnica já se tornou tão conhecida
que não é necessário estender-nos muito a respeito. O único ponto a salientar é
que nem a propaganda em si nem as técnicas empregadas são peculiares ao
totalitarismo; o que altera de forma tão abrangente sua natureza e efeitos num
Estado totalitário é o fato de que a propaganda visa a um único alvo: todos os instrumentos
de propaganda são coordenados de modo a conduzir os indivíduos na mesma direção
e a produzir a característica Gleichschaltung (N. do R. Literalmente, "padronização")
de
todas as mentes. Como resultado, o efeito da propaganda nos países totalitários
difere, não só na magnitude mas também na espécie, do efeito alcançado pela
propaganda de agências independentes e competitivas que visam a finalidades
diversas. Quando todas as fontes de informação corrente se acham sob um controle
efetivo único, já não se tem apenas uma situação em que se tenta persuadir o povo
disto ou daquilo. O hábil disseminador de propaganda terá então o poder de manipular
as mentes da forma que lhe aprouver, e mesmo as pessoas mais sagazes e independentes
não poderão evitar de todo essa influência, se permanecerem por muito tempo
isoladas das demais fontes de informação.
Embora, num Estado totalitário, a
posição ocupada pela propaganda confira a este instrumento um poder
incomparável sobre as mentes, os efeitos morais peculiares que ela produz não
decorrem da técnica mas do objetivo e da amplitude da propaganda totalitária.
Se esta se limitasse a doutrinar o povo no sistema completo de valores para o
qual é dirigido o esforço social, representaria apenas uma manifestação
específica das características da moral coletivista que já analisamos. Caso seu
objetivo fosse unicamente ensinar ao povo um código
moral definido e abrangente, o problema se restringiria a determinar se esse
código é bom ou mau. Já vimos quão pouco nos atrai o código moral de uma
sociedade totalitária, e que a tentativa de estabelecer a igualdade por meio de
uma economia dirigida só pode produzir uma desigualdade oficialmente imposta -
a determinação autoritária do status de cada indivíduo na nova ordem
hierárquica.
Vimos também que a maioria dos elementos
humanitários da nossa moral - o respeito pela vida humana, pelos fracos e pelo
indivíduo em geral - tenderão a desaparecer. Por mais repulsivo que isso pareça
à maioria das pessoas, e embora implique uma mudança de padrões morais, não é,
necessariamente, de todo antimoral. Certos
aspectos de tal sistema podem mesmo atrair os mais rígidos moralistas de índole
conservadora por lhes parecerem preferíveis aos padrões mais brandos da sociedade
liberal.
As conseqüências morais da propaganda
totalitária que passaremos a considerar são, no entanto, de uma natureza ainda
mais profunda. Elas destroem todas as regras morais, porque minam um dos
fundamentos de toda a ética: o senso da verdade e o respeito a ela. Pela
própria natureza da sua função, a propaganda totalitária não se pode limitar a
valores, a questões de opinião e de convicção moral em que o indivíduo sempre
se conforma mais ou menos ás idéias que imperam em sua comunidade; ela tem de
estender-se a questões de fato, em que a inteligência humana está envolvida de modo
diferente. Isso acontece, em primeiro lugar, porque, para levar as pessoas a aceitar
os valores oficiais, a autoridade tem de justificá-los, ou de mostrar que eles
se relacionam com os valores já aceitos pelo povo, os quais habitualmente encerram
asserções sobre elos causais entre meios e fins; em segundo lugar, porque a
distinção entre fins e meios, entre a meta visada e as medidas adotadas para
alcançá-la, na realidade nunca é tão clara e precisa como o faz supor uma
discussão superficial de tais problemas. Assim sendo, é necessário fazer com
que as pessoas concordem não apenas com as finalidades últimas mas também com
as idéias sobre os fatos e as possibilidades em que se baseiam as medidas
específicas.
Já vimos que o consenso em torno desse
código moral completo, desse sistema exaustivo de valores que se acha implícito
num plano econômico, não existe numa sociedade livre: seria preciso criá-lo.
Mas não devemos supor que, ao abordar a sua tarefa, o planejador teria
consciência dessa necessidade ou que, mesmo dela consciente, lhe fosse possível
criar de antemão um código tão vasto. Ele só descobrirá
os conflitos entre as diferentes
necessidades à medida que for avançando, e terá de tomar suas decisões à
proporção que a isso o obrigarem as circunstâncias. Não existe um código de
valores in abstracto a orientar suas decisões antes que
estas tenham de ser tomadas; esse código terá de ser criado com base nas
decisões concretas. Já vimos também como essa impossibilidade de separar das
decisões concretas a questão geral dos valores impede que um órgão democrático,
não estando em condições de decidir os detalhes técnicos de um plano, consiga
determinar os valores que o orientam.
E, embora caiba à autoridade
planejadora decidir constantemente sobre questões de mérito em que não existem
regras morais definidas, ela se verá obrigada a justificar tais decisões
perante o povo -ou, pelo menos, a levar de algum modo o povo a acreditar serem
essas as decisões justas. Mesmo que os responsáveis por uma decisão se tenham guiado
por simples preconceito, terão de apresentá-la ao público como sendo baseada em
algum princípio orientador, para que a comunidade não se limite a submeter-se
de modo passivo mas apóie ativamente a medida. A necessidade de encontrar um
pretexto para justificar as preferências e antipatias que, à falta de outra coisa,
muitas vezes orientam as decisões do planejador, e a necessidade de ampla aprovação
possível - tudo isso o obrigará a inventar teorias, isto é, explicações que estabeleçam
relação entre os fatos, os quais então passam a integrar a doutrina dominante.
Esse processo de criação de
"mitos" para justificar os atos do líder totalitário nem sempre é
consciente. Pode acontecer que o líder sinta apenas um desagrado instintivo
para com a situação que encontrou e o desejo de criar uma nova ordem hierárquica, mais apropriada à sua
concepção de mérito. Talvez ele saiba apenas que tem aversão aos judeus, os
quais pareciam tão bem sucedidos numa ordem social onde não havia lugar
satisfatório para ele, e que tem simpatia e admiração pelo homem alto e louro,
pela figura "aristocrática" dos romances de sua juventude. Desse modo,
estará pronto a adotar teorias que parecem fornecer uma justificação racional aos
preconceitos que compartilha com muitos de seus companheiros. E assim uma teoria
pseudocíentífíca é incorporada à ideologia oficial que, em maior ou menor grau, dirige as ações de todos. Ou
então, o generalizado descontentamento com a civilização industrial e o anseio
romântico da vida campestre, aliados à
idéia (provavelmente errônea) do valor peculiar dos camponeses como soldados,
fornecem a base de outro mito: Blut und Boden ("Sangue e solo"), o qual não
só expressa valores supremos mas uma multiplicidade de crenças
a
respeito de relações de causa e efeito, crenças que, convertidas nos ideais que
orientam a atividade de toda a comunidade, não devem mais ser contestadas.
A necessidade de semelhantes doutrinas
oficiais, como instrumento para dirigir e congregar os esforços do povo, foi
claramente prevista pelos diferentes teóricos do sistema totalitário. As
"nobres mentiras" de Platão e os "mitos" de Sorel atendem
ao mesmo objetivo da doutrina racial dos nazistas ou da teoria do Estado
corporativo de Mussolini. Todos eles
baseiam-se necessariamente em pontos de vista pessoais sobre fatos, elaborados
e transformados depois em teorias científicas, de modo a justificar uma opinião
preconcebida.
O meio mais eficaz de fazer com que as
pessoas aceitem os valores aos quais terão de servir é persuadi-las de que tais
valores são na realidade os mesmos que elas, ou pelo menos as mais esclarecidas
entre elas, sempre defenderam, mas que antes não eram devidamente compreendidos
ou apreciados. Leva-se o povo a abandonar os velhos deuses pelos novos, sob
pretexto de que estes são de fato como por instinto supunham que fossem, embora
até o momento só o percebessem de maneira vaga. E a técnica mais eficiente para
a consecução desse fim é continuar a usar as velhas palavras, alterando-lhes, porém,
o sentido. Poucos aspectos dos regimes totalitários despertam
tanta confusão no observador superficial e são, ao mesmo tempo, tão característicos
do clima intelectual desses sistemas, como a completa perversão da linguagem, a
mudança de sentido das palavras que expressam os ideais dos novos regimes. Nesse
contexto, a palavra mais deturpada é, evidentemente, "liberdade", um termo
tão usado nos Estados totalitários como em qualquer outro lugar. Pode-se mesmo
dizer que, sempre que a liberdade que conhecemos foi aniquilada, isso se fez em
nome de uma nova liberdade prometida ao povo. Tal constatação deve ajudar-nos a
nos precaver contra as promessas de Novas liberdades em troca das
antigas.
Mesmo entre nós existem
"planejadores da liberdade" que prometem uma "liberdade coletiva"
cuja natureza é possível inferir do fato de os seus defensores acharem necessário
assegurar-nos de que, "naturalmente, o advento da liberdade planejada não significa
que todas [sic] as formas mais antigas de liberdade
devam ser abolidas".
Pelo menos, o Dr. Karl Mannheim, de
cuja obra extraímos estas citações, nos previne de que "uma concepção de
liberdade moldada segundo a época precedente é um obstáculo à verdadeira compreensão
do problema". O sentido que ele empresta à palavra "liberdade"
é, porém, tão enganoso como o que lhe dão os políticos totalitários. Como a
liberdade a que estes se referem, a "liberdade coletiva" que o Dr.
Mannheim nos oferece não é a dos membros da comunidade; é a liberdade ilimitada
do planejador de manipular a sociedade da forma que lhe apraz. (3) Significa, de
fato, a confusão entre liberdade e poder, levada ao extremo.
Nesse caso particular, a deturpação do
sentido da palavra foi, naturalmente, favorecida por uma longa série de filósofos
alemães e, o que não é menos importante, por muitos teóricos do socialismo.
Entretanto, "liberdade" não é
em absoluto a única palavra cujo sentido se inverteu a fim de torná-la
instrumento da propaganda totalitária. Já vimos que o mesmo sucede com
"justiça" e "lei", "direito" e "igualdade".
A lista poderia ser ampliada até incluir quase todos os termos morais e políticos
em uso.
Para os que não vivenciaram esse
processo, é difícil imaginar a extensão de tal mudança do sentido das palavras,
a confusão que ela causa e as barreiras que cria a qualquer debate racional.
Se, por exemplo, de dois irmãos, um abraça a nova fé, depois de algum tempo ele
parecerá falar uma língua diferente, que torna impossível qualquer comunicação
entre ambos. E a confusão agrava-se ainda mais porque essa alteração do sentido
das palavras que definem ideais políticos não é um fato isolado mas um processo
contínuo, uma técnica empregada consciente ou inconscientemente com o fim de
dirigir o povo. Pouco a pouco, à medida que o processo se desenrola, toda a
linguagem é por assim dizer esvaziada, e as palavras são despojadas de qualquer
significado preciso, podendo designar tanto uma coisa como o seu oposto e sendo
usadas apenas por causa das conotações emocionais que ainda lhes estão vinculadas.
Não é difícil impedir a maioria de
pensar de forma independente. Mas é preciso silenciar também a minoria que se
mantém inclinada à crítica. Já vimos por que motivo a coação não se pode
limitar à imposição do código moral em que se baseia o plano diretor de toda
atividade social. Uma vez que muitas partes desse código nunca serão enunciadas
explicitamente e muitos pontos da escala de valores constarão do plano apenas
de forma implícita, o plano em si em todos os detalhes, e mesmo todos os atos
do governo, devem tornar-se sacrossantos e acima de crítica. Para que o povo apóie
sem hesitações o esforço comum, deve ser persuadido de que não só o fim visado
mas também os meios escolhidos são os mais justos. A ideologia oficial, cuja aceitação
deve ser forçosamente obtida, incluirá, pois, todas as opiniões sobre fatos em
que se baseia o plano. A crítica e mesmo as expressões de dúvida têm de ser suprimidas
porque tendem a enfraquecer o apoio geral. Como dizem os Webb acerca da
situação de todo empreendimento na Rússia: "Enquanto a obra está (152)
sendo executada, qualquer expressão pública de dúvida ou mesmo de receio quanto
ao êxito do plano é um ato de deslealdade e até de traição por seus possíveis
efeitos sobre a vontade e os esforços dos demais membros do quadro de
funcionários". Quando a dúvida ou o
receio não dizem respeito ao êxito de determinada realização, mas ao plano
social em seu todo, com mais razão ainda deverão ser tratados como sabotagem.
Assim, os fatos e as teorias tornam-se
objeto de uma doutrina oficial, na mesma medida em que as opiniões sobre
valores. Todo o arsenal educativo - as escolas e a imprensa, o rádio e o cinema
será empregado exclusivamente para disseminar as idéias, verdadeiras ou falsas, que
fortaleçam a crença na justeza das decisões tomadas pela autoridade; e toda
informação que possa causar dúvidas ou hesitações será suprimida. O provável
efeito sobre a lealdade do povo ao sistema torna-se o único critério para
resolver se determinada informação deve ser publicada ou não. A situação num Estado totalitário é, permanentemente, e
em todos os campos, a mesma de qualquer outro país, com relação a determinados
assuntos, em tempo de guerra.
Tudo que possa despertar dúvidas sobre
a competência do governo, ou criar descontentamento, será ocultado ao público.
Os fatos que possam servir de base para comparações desfavoráveis com as
condições de vida em outros países, o conhecimento de possíveis alternativas
para a política já adotada, informações que possam sugerir que o governo não
esteja cumprindo as suas promessas ou aproveitando as oportunidades para
melhorar as condições gerais - tudo isso será omitido. Não há, pois, campo
algum em que não se pratique o controle sistemático das informações e em que a
uniformidade de pontos de vista não seja imposta.
Isso se aplica inclusive às esferas
aparentemente alheias a qualquer interesse político, e em particular a todas as
ciências, mesmo as mais abstratas. É fácil perceber que, nas disciplinas que
tratam diretamente dos assuntos humanos e, portanto, afetam de maneira imediata
as idéias políticas, tais como a história, o direito e a economia, a busca imparcial da verdade não pode ser permitida num
sistema totalitário, e a justificação das idéias oficiais constitui o
objetivo único, fato aliás amplamente confirmado pela experiência. Com efeito,
tais disciplinas têm-se tornado em todos os países totalitários as mais
fecundas fábricas dos mitos oficiais que os governantes empregam para dirigir o
pensamento e a vontade dos seus súditos. Não é de surpreender que, nessas
esferas, a própria simulação da busca da verdade seja abandonada e que as
autoridades decidam quais as doutrinas a serem ensinadas e publicadas.
O controle totalitário da opinião também
se estende, entretanto, a assuntos que a princípio não parecem ter importância
política. Às vezes é difícil explicar por que certas doutrinas são oficialmente
proscritas e outras encorajadas, e é curioso que essas aversões e preferências
se assemelhem nos diferentes sistemas totalitários. Em particular, todos eles parecem nutrir em
comum uma intensa antipatia pelas formas mais abstratas de pensamento - atitude
também manifestada por muitos de nossos cientistas adeptos do coletivismo. Não
existe muita diferença entre a teoria da relatividade ser descrita como
"um ataque semítico aos fundamentos da física cristã e nórdica" ou
combatida porque "se opõe ao materialismo dialético e ao dogma marxista".
Tampouco há diferença entre atacar
certos teoremas da estatística matemática porque "fazem parte da luta de
classes na fronteira ideológica e são um produto do papel histórico da
matemática como serva da burguesia", e condenar o assunto porque "não
apresenta garantias de servir aos interesses do povo". Ao que tudo indica,
a própria matemática pura não está isenta de ataques, e o fato de se possuir
determinados pontos de vista sobre a natureza da continuidade pode ser atribuído
a "preconceitos burgueses". Segundo os Webb, a Revista
de Ciências Naturais Marxistas-Leninistas tem os seguintes slogans:
"Nós
defendemos a matemática do partido. Nós defendemos a pureza da teoria
marxista-leninista na cirurgia". A situação parece muito semelhante na
Alemanha. A Revista da Sociedade Nacional-Socialista de
Matemáticos está repleta de expressões como "matemática do partido"
e um dos mais conhecidos físicos alemães, Lennard, detentor do prêmio Nobel,
deu à obra a que dedicou toda a sua existência o título de Física
alemã em quatro volumes!
É bastante característico do espírito
do totalitarismo condenar toda atividade humana exercida por prazer, sem
propósitos ulteriores. A ciência pela ciência, a arte pela arte, são igualmente
abomináveis aos nazistas, aos nossos intelectuais socialistas e aos comunistas.
Toda
atividade
deve ser justificada por um objetivo social consciente. Não deve haver
atividade espontânea, não-dirigida, porque poderia levar a resultados
imprevistos, não contemplados pelo plano -poderia propiciar o surgimento de
algo novo que a filosofia do planejador nem sequer antecipou. Esse princípio estende-se
inclusive a jogos e diversões. Deixo a cargo do leitor adivinhar se teria sido
na Alemanha ou na Rússia que os jogadores de xadrez foram oficialmente exortados
com as seguintes palavras: "Devemos acabar de uma vez por todas com a neutralidade
do xadrez. Devemos condenar inapelavelmente a fórmula "o xadrez pelo xadrez",
assim como condenamos a fórmula "a arte pela arte".
Por incríveis que possam parecer tais
aberrações, não devemos considerá-las simples subprodutos acidentais que nada
têm a ver com o caráter essencial de um sistema dirigido ou totalitário. Seria
um erro. Elas são o resultado direto do desejo de fazer com que tudo seja
dirigido por "uma concepção unitária do conjunto", da necessidade de
defender a todo custo as idéias em nome das quais se exigem das pessoas
sacrifícios constantes, da idéia geral de que os conhecimentos e as crenças do povo
são instrumentos a serem usados para uma finalidade única. Quando a ciência tem
de servir, não à verdade mas aos interesses de uma classe, de uma comunidade ou
de um Estado, o fim único da argumentação e do debate é justificar e difundir
ainda mais as idéias por meio dos quais é dirigida toda a vida da comunidade.
Como explicou o Ministro da Justiça nazista, a pergunta que toda nova teoria
científica deve fazer a si mesma é: "estarei servindo ao
nacional-socialismo para maior benefício de todos?"
A própria palavra "verdade"
perde o seu antigo significado. Já não designa algo que deve ser descoberto,
sendo a consciência individual o único juiz a decidir se, em cada caso, a prova
(ou a autoridade daqueles que a proclamam) justifica a convicção. Torna-se algo
a ser estabelecido pela autoridade, algo em que é preciso crer a bem da unidade
do esforço organizado, e que talvez se faça necessário alterar de acordo com as
exigências desse mesmo esforço.
O clima intelectual gerado por essa
situação, o espírito de completo ceticismo com respeito à verdade, a perda da
própria noção do significado da palavra "verdade", o desaparecimento
do espírito de pesquisa independente e da crença no poder da convicção racional, a maneira pela qual
as diferenças de opinião em cada ramo de conhecimento se convertem em questões
políticas a serem resolvidas pela autoridade, tudo isso só pode ser avaliado
por quem o experimentou pessoalmente. Uma descrição sucinta não consegue
transmitir o que seria viver nessa atmosfera. O
fato mais alarmante, talvez, é que o desprezo
pela liberdade intelectual não surge apenas depois que o sistema totalitário já
se estabeleceu mas pode ser observado em toda parte, entre intelectuais que
abraçaram uma doutrina coletivista e que são aclamados como líderes do
pensamento, mesmo em países que ainda se encontram sob um regime liberal.
Desculpam-se as piores opressões, desde
que praticadas em nome do socialismo, e a criação de um sistema totalitário é
abertamente defendida por homens que se dizem porta-vozes dos cientistas dos
países liberais; a própria intolerância é francamente enaltecida. Não vimos há
pouco um cientista inglês defender a própria Inquisição, por achar que "é
benéfica à ciência quando protege uma classe em ascensão"? É um ponto de
vista que coincide com as convicções que levaram os nazistas a perseguir os
homens de ciência, a queimar os livros científicos e a suprimir
sistematicamente a classe intelectual dos países por eles dominados.
O desejo de impor ao povo uma ideologia
considerada salutar para ele não é um fato novo ou peculiar à nossa época. Nova
é a argumentação com a qual muitos de nossos intelectuais procuram justificar
tais tentativas. Alega-se que na nossa sociedade não existe a verdadeira
liberdade de pensamento, porque as opiniões e os gostos das massas são moldados
pela propaganda, pela publicidade, pelo exemplo das classes superiores e por
outros fatores ambientais que obrigam o pensamento a se conformar a padrões
estabelecidos. Daí se conclui que, se os ideais e gostos da grande maioria são
sempre plasmados por circunstâncias passíveis de controle, devemos usar intencionalmente
esse poder para levar o povo a pensar da forma que nos parece conveniente.
É verdade que a grande
maioria das pessoas raras vezes é capaz de pensar com independência, aceitando
em geral as idéias correntes e contentando-se com a ideologia em que nasceu ou
para a qual foi levada. Em qualquer sociedade, a liberdade de pensamento só
terá, talvez, significação imediata para uma pequena minoria. Mas isso não quer
dizer que alguém possua qualificações ou deva ter o poder para escolher quem
deverá gozar dessa liberdade. Por certo não justifica que um grupo qualquer se
arrogue o direito de determinar o que se deve pensar ou crer.
Constitui absoluta confusão de idéias
sugerir que, como em qualquer sistema a maioria do povo é liderada por alguém,
não faz diferença que todos sejam obrigados a seguir a mesma liderança.
Menosprezar a liberdade intelectual porque ela nunca significará para todos a mesma
possibilidade de pensamento independente implica não atentar para os motivos
que conferem a essa liberdade o seu valor. O essencial, para que ela exerça a
sua função de impulsionadora do progresso intelectual, não é que todos sejam capazes de pensar ou
escrever, mas que toda causa ou idéia possa ser contestada. Enquanto o direito
de dissensão não for suprimido, haverá sempre quem ponha em dúvida as idéias
que norteiam seus contemporâneos e submeta novas idéias à prova da discussão e
da propaganda.
Essa interação entre indivíduos dotados
de conhecimentos e opiniões diferentes é o que constitui a vida do pensamento.
O desenvolvimento da razão é um processo social baseado na existência de tais
diferenças. É da própria essência desse processo não podermos prever seus
resultados, não conhecermos as idéias que contribuirão para esse
desenvolvimento e as que deixarão de fazê-lo. Em suma, não podemos dirigir tal desenvolvimento sem com
isso limitá-lo. "Planejar" ou "organizar" a evolução da
mente, ou mesmo o progresso em geral, é uma contradição. Supor que a mente
humana deva controlar "conscientemente" o seu próprio desenvolvimento
confunde a razão individual (a única
que pode "controlar conscientemente" alguma coisa) com o processo
interpessoal a que se deve tal evolução. Ao tentar controlar esse processo,
estaremos apenas impondo-lhe fronteiras, e mais cedo, mais tarde, provocaremos a estagnação do pensamento
e o declínio da razão.
O aspecto trágico do pensamento
coletivista é que, ao tentar tornar a razão a instância suprema, acaba
destruindo-a por interpretar de forma errônea o processo do qual depende o
desenvolvimento dessa mesma razão. Pode-se dizer, com efeito, que o paradoxo das doutrinas coletivistas, e
de sua exigência de controle e planejamento "consciente", reside no
fato de que elas levam inevitavelmente à necessidade de que a mente de um
indivíduo venha a exercer o domínio supremo - enquanto a atitude individualista em face dos fenômenos
sociais é a única que nos permite reconhecer as forças supra-individuais que
regem a evolução da razão. O individualismo é, assim, uma atitude de humildade
diante desse processo social e de tolerância para com as opiniões alheias,
sendo a negação perfeita da arrogância intelectual implícita na idéia de que o
processo social deva ser submetido a um amplo dirigismo.
O
CAMINHO DA SERVIDÃO
Hayek, Friedrich August von.
http://pt.wikipedia.org/wiki/O_caminho_da_servid%C3%A3o Hayek, Friedrich August von.
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Dostoievsky publicou "OS DEMÔNIOS" em capítulos, num jornal para todos lerem, mais de 40 anos antes da revolução comunista. Mas, assim como Saint Germain, que tentou evitar a carnificina na França e não foi acreditado, parece que Dostoievsky não foi levado a sério. O que lembra muito nossa época... Muitos alertas já soaram, inutilmente. (Veja em AGENDAS) É estranho como a mente humana abusa da sua capacidade de focar em alguns pontos e ignorar outros, principalmente de ignorar o todo.
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