A divisão de trabalho no Foro de São Paulo: como o Brasil serve de QG da revolução
Desde o
fim dos anos 1990, a América Latina vem passando por uma “onda” de
governos de esquerda, considerados mais radicais ou mais moderados,
conforme avaliação de suas políticas e discursos. Por muito tempo, o
governo brasileiro foi considerado moderado e um player confiável para estabilizar a região. Em suma, um modelo de “pragmatismo” a ser seguido.
Com os últimos eventos na Venezuela e o
decidido apoio brasileiro à Maduro, no entanto, os principais analistas
da mídia brasileira mostram-se confusos. Com Dilma, o Brasil teria dado
uma guinada ainda mais à esquerda? Os afagos a Cuba teriam quais
motivações?
Em toda parte, há enorme grau de
insatisfação com a atual política externa brasileira. Dilma é cobrada a
se pronunciar sobre a violação dos direitos humanos pelo governo de
Caracas e atuar como mediadora do conflito, o qual já fez mais de três
dezenas de mortes e uma centena de prisões. Empresários reclamam do
Mercosul (e sua intensa ideologização) e do imobilismo da política
comercial em costurar acordos bilaterais com outros parceiros. Enquanto
isso, o caso de espionagem dos EUA foi tratado de forma histérica com
discursos tipicamente antiamericanos atrapalhando toda a agenda
bilateral existente. Para aqueles que se surpreendem pelos
posicionamentos do Brasil, é bom lembrar: há muito tempo nossa política
externa saiu das mãos do Itamaraty para ser gerida pelo Foro de São
Paulo[1].
A crise na Venezuela apenas está explicitando novamente qual o papel do Brasil na região e dentro da estratégia do Foro.
A Dialética do Foro e o sentido socialista da história
O principal fator a ser observado em
qualquer movimento revolucionário é a existência de duas faces: uma face
visível e pública e outra clandestina ou discreta – onde fica o cérebro
e o comando da operação. A parte visível faz a militância, promove a
guerra cultural, proclama sentimentos nobres e posa de moderada enquanto
defende e acoberta as ações da parte discreta, através da mobilização
de meios legais, diplomáticos, jornalísticos.
“Radicais” e “moderados”: todos “companheiros” por uma mesma distopia socialista.
Há também sempre uma facção radical e
histriônica que chama a atenção e desvia o foco, enquanto a facção
considerada mais pragmática viabiliza as verdadeiras ações decisivas no
processo de conquista do poder.
Dentro deste panorama, a tradicional
divisão entre os grupos de esquerda “moderados” e os grupos “radicais” é
apenas estratégica e artificial, pois a falsa dissidência radical atua
em unidade com os “moderados”. Essas divisões dentro da esquerda
revolucionária – “público x discreto” e “moderados x radicais” – apenas
provam sua vitalidade e multiplicam sua capacidade para ataques
“desconexos” e “contraditórios”, os quais deixam os adversários
paralisados ou os induz a reações que reforçam a própria esquerda, em um
de seus pólos.
No entendimento marxista, a história é
dialética e movida por contradições. Portanto, a tarefa da vanguarda
revolucionária é estimular as contradições para acelerar o “sentido da
história”[2]. Por essa razão, a esquerda acaba dividindo-se em pólos “opostos”, mas que atuam em conjunto.
Com esses conceitos, pode-se entender o
papel desempenhado pelos países e seus governos esquerdistas no âmbito
geral da cooperação dentro do Foro de São Paulo.
A Cuba castrista é o símbolo ideológico e
a unidade de inteligência estratégica do Foro. A Venezuela e a
Argentina, cujos governos são fanfarrões e radicais, podem ser
consideradas “pontas de lança” do processo, auxiliadas por satélites
como Bolívia e Equador. Nesses países, o estágio de socialismo é
avançado, com as instituições totalmente aparelhadas, economia subjugada
pela burocracia estatal e um clima de controle social ostensivo, seja
através da repressão governamental, seja através da ameaça de grupos
pró-governo.
Já o Brasil é o verdadeiro
quartel-general da revolução latino-americana, dando cobertura para o
avanço socialista no resto do continente. Ao nosso país cabe o papel de
fornecedor de recursos – o “prestígio” e o peso econômico – para
guarnecer a tomada de poder em outros lugares. É a face discreta e
moderada do movimento.
Essa divisão de trabalho implica na
diversidade de “experiências socialistas”, que terão velocidades
distintas dependendo da situação de cada nação. Porém, todas essas
experiências apontam na mesma direção e nos mesmos objetivos: agem em
unidade rumo à concentração de poder progressiva nas mãos dos
revolucionários.
Como as ações do Foro e de seus membros
são dialéticas e na base da duplicidade, os grandes lances estratégicos e
a radicalização dos processos socializantes se dão fora do QG central –
o Brasil -, mas contam com sua complacência e cobertura.
Protagonismo bolivariano e a discrição petista
A Chávez sempre coube o protagonismo na
criação e patrocínio de projetos políticos no subcontinente, entoando o
“socialismo do século XXI” e o “sonho da Pátria Grande”, atribuído a
figura histórica de Simon Bolívar. Com dinheiro do petróleo de sobra –
graças ao boom das commodities – a Venezuela exerceu uma forte
diplomacia pró-comunismo na América Latina, interferindo abertamente em
países estrangeiros.
Chávez passou a sustentar a ditadura
cubana através da criação da Aliança Bolivariana para os Povos da Nossa
América (Alba), um acordo o qual estabelecia o envio em massa de médicos
cubanos para o país, enquanto a Venezuela abastecia a Ilha caribenha
com petróleo barato.
Posteriormente, Evo Morales (Bolívia),
Rafael Correa (Equador) e Daniel Ortega (Nicarágua) também aderiram,
complementando a aliança com alguns pequenos países do Caribe, que
venderam seus apoios em troca de petróleo barato.
Chávez também atraiu o casal Kirchner
para o bolivarianismo comprando os títulos da dívida externa argentina
(o que viabilizou a sua reestruturação após o calote) e fornecendo
petróleo barato para a combalida economia platina. Graças a decisiva
“solidariedade” chavista, o governo argentino pôde enfrentar seus
credores e reestatizar diversas empresas estratégicas para controlar a
economia do país.
Já no Mercosul, a entrada da Venezuela,
de forma concomitante com a decisão de suspensão do Paraguai, em junho
de 2012, deixou claro que o Foro passou a mandar no bloco[3],
o qual desde a ascensão de Lula e Kirchner, passou a ser uma instância
de acomodação de interesses argentinos. A integração comercial perdeu
espaço para um arranjo totalmente político, beneficiando os
“companheiros”.
Outro projeto multilateral do Foro
capitaneado pelo chavismo foi a constituição, em 2008, da União das
Nações Sul-Americanas (Unasul). Ali foram criadas diversas instâncias de
planejamento estatal, na forma de conselhos para infra-estrutura,
economia, energia, etc. Na atual crise venezuelana, é a entidade que
monitora os “diálogos” e apóia Maduro contra a oposição.
A Comunidade dos Estados
Latino-Americanos e Caribenhos (Celac) foi outra iniciativa chavista
para incluir Cuba e excluir EUA e Canadá das discussões e, praticamente,
substituir a OEA. A Celac passou a ser um palanque para discursos
anti-EUA e de apoio à Cuba, feitos até por “moderados”, como Bachelet do
Chile.
No fim de janeiro de 2013, Rául Castro,
ditador de Cuba, assumiu a presidência rotativa e os discursos dos
Chefes de Estados da Celac deram o tom de hostilidade ostensiva contra
os EUA. Cristina Kirchner, presidente da Argentina, falou que a
liderança cubana marcaria “uma grande mudança” para a região.
Na última Cúpula de janeiro de 2014,
realizada em Havana, todos os chefes de Estado presentes ajudaram a
endossar o bolivarianismo e Maduro[4].
Dilma aproveitou para condenar o “bloqueio cubano”, e depois inaugurar o
Porto de Mariel – que conta com financiamento público brasileiro.
Propaganda da oposição venezuelana mostra a “incoerência” daqueles que apoiam Maduro
Foi Chávez também o responsável por dar
guarida às Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc) quando o
combate à guerrilha pelo governo Uribe estava no auge. O papel das Farc é
essencial: além de um poderoso braço militar pronto a intimidar os
inimigos, vê-se claramente que a marcha da revolução comunista no
continente é financiada pelo narcotráfico[5], que avançou, principalmente, no Brasil, que saiu da condição de rota do tráfico para ser um grande mercado consumidor.
Em 2013, relatório da ONU chegou a
conclusão que o Brasil tornou-se o principal reduto de passagem de
cocaína para a Europa. No mesmo relatório, chama atenção o fato de que
em 6 anos, o consumo de cocaína no Brasil dobrou, alcançando o país a
condição de segundo maior consumidor da droga no mundo, atrás apenas dos
EUA[6].
As Farc possuem relacionamento intenso
com petistas graduados, e a diplomacia brasileira, através de Marco
Aurélio Garcia, constantemente apóia o grupo nas “discussões de paz” com
o governo da Colômbia. O Brasil jamais reconheceu-as como um grupo
terrorista, mas a considera como “força beligerante” legitimando sua
atuação, enquanto viabiliza uma saída “política” para a guerrilha .
Nesse ponto, há duas estratégias: a
primeira é transformar as Farc num partido legal. A segunda é legalizar
sua fonte de receita, o que será conseguido com a legalização das
drogas, levando as Farc a terem um quase monopólio do comércio na região[7].
A diplomacia brasileira, enquanto brada
um antiamericanismo caricato, acostumou-se a ceder em prol dos
interesses de aliados do Foro. Tanto Evo Morales como Fernando Lugo
ganharam as eleições com base em um discurso anti-imperialista contra o
Brasil e suas principais promessas de campanha foram cumpridas graças a
complacência do governo petista. Morales foi “agraciado” com as
instalações da Petrobras – as quais foram encampadas pelo exercito
boliviano, sem nenhuma reação do Brasil -, fundamental para que ganhasse
legitimidade interna. O mesmo ocorreu com os acordos de Itaipu com o
Paraguai, quando o Brasil passou a pagar mais pela energia. Rafael
Correa, assim que se tornou presidente do Equador, também ameaçou dar
calote em financiamentos providos pelo Brasil.
O governo brasileiro deixou-se
aparentemente conduzir em todos esses processos, nos quais, na verdade,
liderou nas sombras e nos bastidores do Foro, apenas para não perder sua
face “moderada” e de “mediador isento”. Em todos os casos, a disputa
entre os “companheiros” era apenas uma fachada a encobrir as
articulações no âmbito do Foro e desnortear os adversários.
O recuo da vanguarda e o avanço da retaguarda: o Brasil petista mostra a sua cara… mais uma vez!
O “modelo bolivariano” de gestão da
economia, no entanto, tem cobrado seu preço e as economias venezuelana e
argentina começaram a sofrer de graves problemas estruturais, colocando
em risco a vanguarda do movimento.
“O socialismo dura enquanto durar o
dinheiro dos outros”, nos dizia Margaret Thatcher. O fracasso econômico
bolivariano faz o Brasil assumir os fardos e tomar a dianteira do
processo, mostrando a unidade entre os movimentos nacionais e arcando
com custos da desestabilização econômica de Argentina e
Venezuela: medidas protecionistas prejudicam as exportações de bens e
serviços brasileiros para o mercado argentino e penalizam nosso setor
industrial, enquanto imensos atrasos comerciais e confiscos cambiais são
provocados pela Venezuela.
Embora a Unasul tenha sido chamada para
“mediar” o conflito, o governo brasileiro tem sido forçado a agir
diretamente nos bastidores e tomar posições que evidenciam sua
cumplicidade mafiosa com a vanguarda venezuelana. A retaguarda
brasileira avança, expondo o flanco, ou seja, o compromisso com os
“radicais”.
Situação semelhante ocorreu quando da
deposição de representantes do Foro no Paraguai e em Honduras, que
precipitou reações rápidas e enérgicas das lideranças da esquerda
latino-americana.
O governo brasileiro não tem medido esforços para apoiar Maduro[8] e cala-se sobre o massacre de estudantes e opositores na Venezuela.
O Brasil também tem sido forçado a
aumentar seu apoio aos Castros para dar legitimidade ao processo de
“abertura” do regime. Cuba tem recebido ajuda econômica fundamental com
acesso a linhas de crédito para obras de infra-estrutura e importação de
serviços e bens brasileiros: o comércio bilateral aumentou dez vezes
desde que o PT chegou ao poder. Por fim, o programa “Mais médicos” é um
verdadeiro “mensalão cubano” para sustentar o regime. Mas também não é
possível duvidar da hipótese, altamente plausível, de que esse dinheiro
poderia voltar ao Brasil na forma de “caixa 2″ para a campanha
presidencial petista, cuja vitória é fundamental para os planos do Foro.
Próximos lances no tabuleiro
Se o governo de Maduro cair, será muito
provável um recuo estratégico da esquerda latino-americana, mas não a
derrota do projeto, pois o principal país coordenador do esquema é o
Brasil. No entanto, os efeitos psicológicos da derrota do bolivarianismo
na Venezuela, onde ele reina há mais de 15 anos, seriam perturbadores e
muito piores para o Foro que a queda de Manuel Zelaya em Honduras ou
Lugo no Paraguai.
Outra “pedra no sapato” do Foro é a
Colômbia. O país vem mostrando força para resistir ao avanço comunista
na América Latina, e nas últimas eleições legislativa elegeu para o
Senado o ex-presidente Álvaro Uribe , principal inimigo das Farc e
talvez único líder conservador de projeção na região. O bloco formado
por Uribe conseguiu tirar a maioria de cadeiras da coalizão de seu
antigo aliado Juan Manuel Santos – que passou a colaborar com o Foro – e
deverá bloquear qualquer acordo de paz com a narcoguerrilha.
Mais ainda, o partido União Patriótica (comunista e ligado à guerrilha) não conseguiu eleger nenhum representante para o senado.
Iconografia petista: a semelhança com a propaganda comunista não é uma mera coincidência.
No Brasil, as manifestações de junho de 2013, inicialmente estimuladas por membros do petismo para forçar um upgrade
revolucionário, saíram do controle, colocaram Dilma na berlinda e um
recuo foi necessário para garantir a reeleição em outubro deste ano.
Apesar de tudo, o PT ainda não tem o total monopólio para comandar os
protestos, e muitos recusam o petismo, mesmo que por motivos difusos.
Se a oposição foi liquidada no campo político-partidário, ainda há
forças esparsas que impedem a hegemonia e a total mutação revolucionária
das instituições brasileiras.
Texto de Rodrigo Sias é mestre em economia pelo IE-UFRJ
[1]
O Foro de São Paulo, criado em 1990 por Lula e Fidel Castro, é a maior
organização política da América Latina, reunindo centenas de partidos
políticos, ONGs, movimentos sociais, terroristas, narcotraficantes,
guerrilheiros, etc. Sob os auspícios do Foro, foi possível a esquerda
passar de apenas um único governo em 1990 (Cuba) para mais de uma dezena
de governos no ano corrente, cumprindo sua missão de “recuperar na
América Latina, o que se perdeu no Leste Europeu”. Basicamente, o Foro
coordena e monitora as ações e políticas desempenhadas por seus
integrantes em prol do avanço socialista na região.
[2]
O Foro absorveu toda a mitologia de um passado ligado a cultura
socialista da América Latina e a dialética entre opressores e oprimidos.
Há “mártires” da causa em todos os países: Índios aymarás andinos,
considerados “proto-comunistas”, o peronismo (Kirchneres como
representantes do peronismo no Museu do Bicentenário, criado há dois
anos), heróis guerrilheiros (Brasil, Uruguai e Chile), o grande líder
Bolívar (Venezuela).
[3]
Através de manobra diplomática, a Venezuela passou a fazer parte do
Mercosul e ajudou a isolar o Paraguai assim que Lugo, membro do Foro,
foi destituído.
[4]
A atual presidência pró-tempore cabe a presidente da Costa Rica, Laura
Chinchilla, pertencente ao “Partido de Libertação Nacional”, partido
membro da Internacional Socialista, que derrotou o partido Frente Ampla,
membro do Foro, em uma disputa do tipo “PT x PSDB”.
[5]
O narcotráfico como instrumento de financiamento da revolução vem desde
o início das Farc e é indissociável do movimento, desde que a URSS
resolveu apoiar Cuba a replicar a experiência maoísta na América Latina.
[6]
O aumento do banditismo brasileiro nas últimas duas décadas veio do
avanço da droga. O Brasil é recordista em mortes oficiais, que hoje
estão em 50 mil por ano, aumentando bastante desde os anos 1990.Em
números não-oficiais, 70mil homicídios.
[7]
O Foro encontra aliados na elite globalista a qual também objetiva a
legalização das drogas para utilizá-las como controle social e aumentar o
poder estatal. Além da intensa campanha de sua Open Society, há
indícios de que o mega investidor George Soros tem comprado terras nas
regiões produtoras de coca – Bolívia, Peru, etc – para lucrar com a
futura legalização. O Uruguai de Mujica, pertencente a Frente Ampla
(membro do Foro) tornou-se um balão de ensaio para a legalização das
drogas no subcontinente.
[8]
Durante a greve de nove semanas da PDVSA, Chávez foi apoiado por Lula
com embarques de produtos brasileiros, possibilitando que o chavismo
consolidasse seu poder. Foi também Lula um dos idealizadores do grupo
“Amigos da Venezuela”, o qual obteve uma saída diplomática àquela crise.
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