NOTAS DE UMA CÚMPLICE
(...)
O meu pai recordava que pessoalmente passou a acreditar no comunismo
depois do vôo de Gagárin. Somos os primeiros! Podemos fazer tudo! Era
assim que ele e a minha mãe nos educavam. Eu fui outubrista³, usava o
emblema com o menino de cabelos frisados, fui pioneira, komsomolka. A
desilusão veio mais tarde.
Depois da perestroika esperávamos que abrissem os arquivos. Abriram-os. Ficamos sabendo a história que escondiam de nós.
"Devemos atrair para nós noventa ou cem milhões que povoam a Rússia
Soviética. Com os restantes não devemos falar — é preciso ,
exterminá-los" (Zinóviev, 1918).
"Enforcar (sem falta, enforcar,
para que o povo veja) não menos de mil kulaks presos, que enriquecem, e
tirar-lhe todos os cereais, designar reféns... De tal modo que a cem
quilômetros em redor o povo veja e trema" (Lênin, 1918).
"Moscou
está literalmente a morrer de fome" (professor Kuznetsov para Trotski).
"Isso não é fome. Quando Tito ocupou Jerusalém, as mães judias comiam os
seus filhos. Quando eu forçar as vossas mães a comerem os seus filhos,
então pode vir ter comigo e dizer: 'Temos fome'" (Trotski, 1919).
As pessoas liam os jornais e as revistas e calavam-se. Sobre elas caiu
um horror insuportável! Como viver com isto? Muitos receberam a verdade
como uma inimiga. E a liberdade também. "Não conhecemos o nosso país.
Não sabemos em que pensa a maioria das pessoas, vemo-las, encontramo-las
todos os dias, mas não sabemos em que pensam, nem o que querem. Mas
temos a ousadia de lhes ensinar. Depressa saberemos tudo, e ficaremos
horrorizados", dizia um conhecido meu, com quem muitas vezes me sentava a
conversar na minha cozinha. Eu discutia com ele. Isto acontecia em
1991... Tempo feliz! Acreditávamos que no dia seguinte, literalmente
amanhã, começaria a liberdade. Começaria do nada, dos nossos desejos.
Dos Cadernos de Apontamentos de Chalámov: "Participei de uma grande
batalha perdida por uma verdadeira atualização da vida". Isto foi
escrito por um homem que passou 17 anos de detenção nos campos
stalinistas.
A nostalgia do ideal manteve-se... Eu dividiria as
pessoas soviéticas em quatro gerações: stalinista, khruschovista,
brejnevista e gorbatchovista. Pessoalmente, pertenço à última. Para nós
era mais fácil aceitar o colapso da idéia comunista, porque não vivemos
no tempo em que a idéia era jovem, forte, sem a perdida magia do
romantismo fatal e das esperanças utópicas. Crescemos no tempo dos
velhos do Kremlin. Nos magros tempos vegetarianos. O grande sangue do
comunismo já estava esquecido. O entusiasmo continuava os seus
desmandos, mas conservava-se o conhecimento de que não era possível
aplicar a utopia na vida.
Isto aconteceu durante a Primeira
Guerra da Chechênia... Conheci em Moscou, numa estação de caminho de
ferro, uma mulher que era das proximidades de Tambov e estava de partida
para a Chechênia, com o objetivo de tirar o filho da guerra: "Não quero
que ele morra. Não quero que ele mate." O Estado já não dominava a alma
dela. Era uma pessoa livre. Eram poucas as pessoas assim. A maioria
eram aqueles a quem a liberdade irritava: "Comprei quatro jornais e cada
um deles tem a sua verdade. Onde está então a verdade? Dantes líamos de
manhã o jornal Pravda e sabíamos tudo. Compreendíamos tudo." As idéias
saíam lentamente de sob a narcose. Se eu iniciava uma conversa acerca do
arrependimento, ouvia em resposta:
"De que devo eu
arrepender-me?" Cada qual se considerava vítima, mas não participante.
Um dizia: "Eu também estive preso." O segundo dizia: "Eu combati." E um
terceiro: "Levantei a minha cidade das ruínas, acartava tijolos dia e
noite". Isto era completamente inesperado: todos bêbados de liberdade,
mas não preparados para a liberdade. E onde estava ela, a liberdade? Só
na cozinha, onde por hábito continuavam a criticar o Poder. Criticavam
Yeltsin e Gorbatchov. Yeltsin porque traíra a Rússia. E Gorbatchov?
Gorbatchov porque traíra tudo. Todo o Século 20. E agora, o nosso país
será igual aos outros. Será como todos. Pensavam que desta vez se
conseguiria.
A Rússia mudara e odiava-se a si mesma por ter mudado. "O Mongol imóvel", escreveu Marx acerca da Rússia.
Civilização soviética... Apresso-me a registrar os seus vestígios. As
caras conhecidas. Interrogo não acerca do socialismo, mas acerca do
amor, do ciúme, da infância, da velhice. Sobre a música, as danças, os
penteados. Sobre os mil pormenores da vida que desaparecia. Este é o
único meio de dirigir a catástrofe para o quadro do habitual e tentar
contar alguma coisa. Adivinhar alguma coisa. Não paro de me espantar com
a maneira como a vida humana comum é interessante. Com a interminável
quantidade das verdades humanas.
A história interessa-se apenas
pelos fatos, e as emoções ficam fora de bordo. Não é costume admití-las
na história. Mas eu olho para o mundo com os olhos de uma humanista e
não de uma historiadora. Fico surpreendida com a pessoa...
O
meu pai já não é deste mundo. E eu não posso terminar uma das nossas
conversas... Dizia que morrer na guerra era mais fácil para ele do que
para os rapazes que agora morrem na Chechênia. Nos anos 1940, iam de um
inferno para outro inferno. Antes da guerra, o meu pai estudou em Minsk,
no Instituto de Jornalismo. Lembrava-se de que quando voltavam das
férias, muitas vezes já não encontravam um único professor conhecido,
estavam todos presos. Eles não compreendiam o que se passava, mas era
horrível. Horrível, como na guerra.
Tive poucas conversas
francas com o meu pai. Ele tinha pena de mim. E eu, tinha pena dele?
Tenho dificuldade em responder a esta pergunta... Éramos implacáveis com
os nossos pais. Parecia-nos que a liberdade era uma coisa muito
simples. Passou algum tempo, e nós próprios nos curvamos sob o peso
dela, porque ninguém nos ensinou a liberdade. Ensinaram-nos apenas como
morrer pela liberdade.
Ei-la, a liberdade! É como a
esperávamos? Estávamos prontos para morrer pelos nossos ideais, para
combater na batalha. Mas começou uma vida . Sem história. Ruíram todos
os valores, menos o valor da vida. Da vida em geral. Novos sonhos:
construir uma casa, comprar um bom carro, plantar uma groselheira... A
liberdade revelou-se a reabilitação da pequena burguesia, habitualmente
maltratada na vida russa. Liberdade de Sua Majestade o Consumo.
Majestade das trevas. Trevas dos desejos, dos instintos — da vida humana
oculta, da qual fazíamos uma idéia aproximada. A toda a história
sobrevivemos, mas não vivemos.
E agora a experiência militar já
não era necessária, era preciso esquecê-la. Milhares de novas emoções,
estados, reações De súbito tudo em redor como que se tornou diferente:
as tabuletas, as coisas, o dinheiro, a bandeira E até o próprio homem.
Tornou-se mais colorido, solto, explodiram o monólito, e a vida
espalhou-se em ilhas, átomos, células. Como em Dalh: liberdade-vontade,
liberdadezinha ampla vastidão. O grande mal tornou-se uma lenda
distante, um romance de suspense político. Já ninguém falava de idéias,
falavam de créditos, de juros, de letras, não ganhavam dinheiro a
trabalhar, mas "faziam-no" em "jogadas".
Seria por muito tempo?
"A mentira do dinheiro na alma russa impoluta", escreveu Marina
Tsvetáeva. Mas parece que os heróis de Ostrovski e de Saltikov-Schedrin
ganharam vida e se passeiam pelas nossas ruas.
A todas as
pessoas com quem me encontrei, perguntava: "O que é a liberdade?" Pais e
filhos respondiam de modos diferentes. Aqueles que nasceram na URSS e
os que já não nasceram na URSS têm experiências distintas. São pessoas
de planetas diferentes.
Os pais: a liberdade é a ausência de
medo; três dias em agosto, quando vencemos o golpe; uma pessoa que
escolhe numa loja entre cem variedades de salame é mais livre do que a
pessoa que escolhe entre dez variedades; não ser espancado, mas nunca
chegaremos às gerações não espancadas; o homem russo não compreende a
liberdade, precisa do cossaco e do látego.
Os filhos: a
liberdade é o amor; a liberdade interior, um valor absoluto; quando não
temos medo dos nossos desejos; ter muito dinheiro, e nesse caso teremos
tudo; quando se pode viver de tal maneira que não se pensa na liberdade.
A liberdade é o normal.
Procuro uma linguagem. O homem tem
muitas linguagens: a linguagem que usa com os filhos, e mais uma, a do
amor Há ainda a linguagem a que recorremos quando falamos conosco
mesmos, quando travamos diálogos interiores. Na rua, no trabalho, nas
viagens — por todo o lado se ouve qualquer coisa diferente, mudam não
apenas as palavras, mas qualquer coisa mais. Uma pessoa até de manhã e à
tarde fala de modos diferentes. E aquilo que acontece durante a noite
entre duas pessoas desaparece por completo da história. Tratamos apenas
da história do homem diurno. O suicídio é um tema noturno, a pessoa
encontra-se no limite da existência e da não existência. Do sono.
Quero entender isto com a precisão da pessoa diurna.
Disseram-me: "Não tem medo de que isso lhe agrade?"
Seguimos pela estrada de Smolensk. Paramos numa aldeia ao lado de uma
loja. Uns conhecidos (eu própria cresci nesta aldeia), uns rostos
bonitos, bondosos, e em redor uma vida humilhante, pobre. Conversamos
acerca da vida.
"Pergunta-me sobre a liberdade? Entre na
nossa loja: vodca, há toda a que se queira: Standart, Gorbatchov
Putinka, salame à farta, e queijo, e peixe. Até há bananas. De que outra
liberdade precisa? Esta para nós é suficiente." "E deram-lhes terra?"
"Quem é que vai mourejar nela? Se a queres, toma-a. Aqui só o Vaska
Krutoi aceitou. O filho mais novo tem oito anos e anda atrás do arado ao
lado do pai. Se fores trabalhar para ele, não penses em juntar algum
dinheiro, ele nem dorme. É um fascista!"
Na "Lenda do Grande
Inquisidor" de Dostoiévski há uma discussão sobre a liberdade. Diz-se
que o caminho da liberdade é difícil, sofrido, trágico "Para que
conhecer esse diabo desse bem e desse mal, se isso custa tanto?" O homem
tem sempre que escolher: a liberdade ou o bem-estar e a organização da
sua vida, a liberdade com sofrimento ou a felicidade sem liberdade. E a
maioria das pessoas segue por esse segundo caminho.
O Grande Inquisidor diz a Cristo, que voltou à Terra:
"Porque vieste cá incomodar-nos? Porque tu vieste incomodar-nos e sabes isso muito bem".
"Ao respeitá-lo [ao homem], tu procedeste como se tivesses deixado de
sentir compaixão por ele, porque exigiste demasiado dele Ao respeitá-lo
menos, exigias-lhe menos, e isso estaria mais perto do amor, pois o
fardo dele seria mais leve. Ele é fraco e vil Que culpa tem a alma
fraca, se é incapaz de juntar em si tão terríveis dons?"
"Não
há preocupação mais constante e torturante para o homem do que, ao
ficar livre, procurar depressa alguém diante de quem se inclinar a quem
transmitir depressa o dom da liberdade com que esse ser infeliz nasce".
Nos anos 1990 sim, éramos felizes, e essa nossa ingenuidade já nunca
mais volta. Parecia-nos que a escolha estava feita, que o comunismo
tinha perdido sem apelo. Mas tudo estava apenas a começar.
Passaram-se vinte anos... "Não nos assustem com o socialismo", dizem os filhos aos pais.
De uma conversa com um professor universitário meu conhecido:
"No final dos anos noventa os estudantes riam-se quando eu recordava a
União Soviética; estavam confiantes de que à sua frente se abria um novo
futuro. Agora o quadro é diferente Os estudantes de hoje já
descobriram, já sentiram o que é o capitalismo — a desigualdade, a
pobreza, a riqueza descarada, têm diante dos olhos a vida dos pais para
quem nada restou do país saqueado. Sonham com a sua revolução. Usam
camisolas vermelhas com retratos de Lênin e de 'Che' Guevara."
Cresceu na sociedade o interesse pela União Soviética. Pelo culto de
Stálin. Metade dos jovens dos 19 aos 30 anos consideram Stálin "o maior
dirigente político". Num país em que Stálin liquidou tantas pessoas como
Hitler, um novo culto de Stálin?! Tudo o que é soviético está outra vez
na moda. Por exemplo, os cafés "soviéticos" — com nomes soviéticos e
pratos soviéticos. Surgiram os bombons "soviéticos" e o salame
"soviético" — com o cheiro e o sabor nossos conhecidos desde a infância.
E, é claro, a vodca "soviética". Na televisão há dezenas de
transmissões e na Internet dezenas de sites nostálgicos "soviéticos".
Podem fazer-se visitas turísticas aos campos stalinistas — em Solovka,
em Magadan. O anúncio promete que para mais completa sensação fornecem
um fato do campo e uma picareta. Mostram os barracões restaurados. E no
final organizam uma pescaria.
Renascem idéias antiquadas:
sobre o Grande Império, sobre a "mão de ferro", "sobre a via russa
especial" Reapareceu o hino soviético, há o Komsomol, mas chama-se
simplesmente "Nachi" (os "Nossos"), há o partido do Poder, que copia o
Partido Comunista. O presidente tem um poder como o do secretário-geral.
Absoluto. Em vez do marxismo-leninismo, a religião ortodoxa.
Antes da revolução de 1917, Aleksandr Grin escreveu: "E o futuro parece
ter deixado de estar no seu lugar." Passaram cem anos, e de novo o
futuro não está no seu lugar. Chegou um tempo em segunda mão. A
barricada é um lugar perigoso para um artista. Uma armadilha. Ali
estraga-se a vista, obscurece a íris, o mundo perde a cor. Na barricada,
o mundo é preto e branco. Dali já não se distingue o homem, vê-se
apenas um ponto negro — um alvo. Passei toda a vida nas barricadas e
queria sair delas. Aprender a alegrar-me com a vida. Recuperar a visão
normal. Mas dezenas de milhares de pessoas saem de novo para as ruas.
Dão-se as mãos, trazem fitas brancas nos blusões, símbolo do
renascimento. Há cor. E eu estou com elas.
Encontrei nas ruas jovens com a foice e o martelo e o retrato de Lênin nas camisolas. Saberão eles o que é o comunismo?
1 Designação depreciativa do regime soviético e de tudo o que com ele se relaciona. (N. do T.)
2 Ou simplesmente Gulag. Acrónimo da designação russa: Glavnoe
Upravlénie Ispravi- telno-trudovikh Laguerei (Direção Central dos Campos
de Trabalho Correcional). 3 Outubrista: primeira forma de organização
das crianças, que a seguir entravam para os pioneiros e mais tarde para o
Komsomol, a juventude comunista.
por Swetlana Alexievich. Artigo publicado em
(Publicado originalmente por Carlos I.S. Azambuja em http://www.alertatotal.net)
http://www.puggina.org/artigo/outrosAutores/notas-de-uma-cumplice/6650
*
MANIFESTO DA OPOSIÇÃO CUBANA
A íntegra de uma entrevista exclusiva do então guerrilheiro Fidel Castro, publicada pela revista Coronet de fevereiro de 1958.
http://www.alertatotal.net/2016/01/manifesto-da-oposicao-cubana.html
*
ÀNGELA MERKEL TRABALHA PARA OS RUSSOS
http://www.midiasemmascara.org/mediawatch/noticiasfaltantes/comunismo/16299-angela-merkel-trabalha-para-os-russos.html
Eles esvaziam as pessoas de propósitos, depois lhes oferecem um propósito falso, mas que serve ao objetivo do PODER. É só poder.
Liberdade permite a descoberta da verdade, do conhecimento, dos valores e dos fundamentos para a ação. Podemos testemunhar hoje, na Internet LIVRE, que a massiva busca da verdade faz o real fact checking e devolve à sociedade o senso de realidade.
*
"O capital intelectual é o que define o destino das nações"
Olavo de Carvalho
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