(...)
Não podendo, portanto, me definir com um termo
unívoco, limito-me a dar uma lista dos vários elementos
que compõem, como podem, minha ideologia pessoal.
1. Em economia, sou francamente liberal.
Acho que a economia de mercado não só é eficaz, mas
é intrinsecamente boa do ponto de vista moral, e que a concorrência
é saudável para todos. Há dois tipos de pessoas que
não gostam da concorrência: os comunistas e os monopolistas.
Às vezes é difícil distingui-los. Quem foi que disse:
"A concorrência é um pecado"? O Dr. Leonardo Boff adoraria
ter dito, mas não disse. Quem disse foi John D. Rockefeller. E,
como se vê pelo episódio bíblico de Marta e Maria
(ou de Esaú e Jacó), a concorrência não é
pecado nenhum. Pecado é um sujeito ser John D. Rockefeller ou o
Dr. Leonardo Boff.
Como liberal sou contra o socialismo e contra toda forma
de Estado corporativo, seja de estilo mussoliniano, seja católico.
Acredito, com Sto. Tomás, que há um preço justo para
cada coisa. Mas, como observavam os conimbricenses, o número de
variáveis a levar em conta no cálculo do preço justo
é ilimitado, e a única maneira de encontrá-lo é
deixar que as pessoas discutam livremente e admitir que, de algum modo,
vox populi, vox Dei. O Estado existe apenas para impedir que os
concorrentes se comam vivos, para assegurar as condições
logísticas da prática do liberalismo e para, last not
least amparar in extremis quem não tenha a mínima
condição de concorrer no mercado.
2. Em religião, sou tradicionalista
e conservador. Não, não sou eu que sou assim. Religião
é tradição e conservação. É
o fator de imutabilidade que faz contraponto à História,
e sem o qual o movimento não seria sequer percebido. Por isto,
o Concílio Vaticano II podia ter mexido em tudo, menos no essencial:
o rito e a doutrina. Ao contrário, ele virou o essencial de pernas
para o ar, apegando-se idolatricamente à imutabilidade do secundário,
como por exemplo o celibato dos padres. Tendo invertido o senso das proporções,
o Concílio tornou a Igreja uma instituição insensata
e ridícula, que condena seus próprios santos enquanto se
prosterna ante os inimigos. Mas não defendo a imutabilidade só
do Catolicismo: acharia uma insensatez mudar uma só palavra do
Corão, da Torá ou dos Vedas.
3. Em moral, sou anarquista. Acredito
que há princípios morais universais, permanentes, que a
inteligência discerne por baixo da variação acidental
das normas e costumes, e acredito, enfim, que há o certo e o errado.
Mas, por isso mesmo, impor o certo é errado, a não ser em
caso de vida ou morte. O sujeito que faz o certo só por obediência
e sem compreendê-lo acaba por transformá-lo no errado. "Experimentai
de tudo e ficai com o que é bom", recomendava S. Paulo Apóstolo,
meu amado guru. É uma questão de viver e aprender. Mas como
podemos aprender, se um tirano paternalista nos proíbe de errar?
Por isto deve haver a mais ampla liberdade de escolha e de conduta, e
a autoridade religiosa deve se limitar a ensinar o certo, com toda a paciência,
sem tentar expulsar o pecado do mundo à força. E se nem
os religiosos, que por sua dedicação à vida interior
têm autoridade para falar dessas coisas, devem impor regras morais
à força, muito menos deve fazê-lo o Estado, que afinal
não passa de uma gerência administrativa, a coisa mais mundana
e prosaica que existe. As leis devem fundar-se apenas em considerações
práticas de ordem, segurança e interesse coletivo, muito
corriqueiras, e jamais em motivos pretensamente elevados de ética,
que terminam por fazer da burocracia estatal um novo clero, e do Código
Penal um novo Decálogo. A coisa mais nojenta que existe é
a metafísica estatal.
4. Em educação, sou mais anarquista
ainda: não acredito em ensino obrigatório do que quer
que seja e noto que a expansão hipertrófica do sistema de
ensino, público ou privado, só cria novas formas de analfabetismo.
Acho que a educação deveria ser livre, que cada um deve
buscá-la na medida de suas necessidades, e considero uma monstruosidade
totalitária que, após proclamá-la um direito, o Estado
moderno faça dela um direito obrigatório. Acho aliás
que o mesmo se dá com muitos outros "direitos", que você
acaba exercendo a muque ou sob pena de prisão. Era um absurdo que
as mulheres não pudessem trabalhar, mas é um absurdo maior
ainda que, obrigadas a trabalhar, não possam ficar em casa para
criar seus filhos. Complementarmente, é um crime que se obrigue
uma criança a fazer trabalho de adulto, mas é um crime maior
ainda que ela seja impedida de ganhar seu próprio dinheiro, fazendo,
se quiser, um trabalho que esteja à altura de suas capacidades
e que, no fim, há de educá-la muito mais do que qualquer
escola. Tornei-me jornalista ainda quase um menino, aos dezessete anos,
e aprendi na redação o que três décadas de
escola não me ensinariam. Esta porcaria de governo que temos hoje
me tiraria de lá e me poria numa escola para aprender português
nos livros de Paulo Coelho.
5. Em política internacional, e sobretudo
em comércio internacional, sou radicalmente nacionalista,
protecionista e tudo o mais que os globalistas odeiam. Isso não
quer dizer que eu seja contra a globalização da economia.
Muito menos há aí qualquer contradição com
a crença liberal acima subscrita. Apenas, entendo que globalismo
não é o mesmo que monopolismo das grandes multinacionais,
e que, assim como estas se associam umas com as outras – e com certos
Estados – para ficar mais fortes, é justo que o empresário
nacional, sobretudo o pequeno, busque apoio do seu próprio governo
para não ser esmagado pelos monopólios internacionais. Aí
a intervenção do Estado não é contra o liberalismo
ou a concorrência: ela é, ao contrário, o fator equilibrante
que impede a extinção do liberalismo e sua substituição
pelo monopolismo. O mais detestável dos socialismos é o
socialismo dos ricos.
6. Em filosofia, sou realista, meus gurus
sendo Aristóteles, Sto. Tomás, Leibniz, Husserl e Xavier
Zubiri, todos os quais afirmam o poder humano de conhecer as coisas como
são. Husserl e Zubiri, no meu entender, foram os únicos
filósofos realmente grandes deste século, e perto deles
um Foucault ou um Deleuze são apenas meninos de escola. Acho que
marxismo, estruturalismo, desconstrucionismo, psicanálise, neo-relativismo,
neopositivismo, etc. etc., são filosofias boas para analfabetos
funcionais e portanto atendem a uma autêntica necessidade social
criada pela rápida expansão do ensino universitário,
onde é preciso fabricar professores cada vez mais rápido
e cada vez mais barato. Ler o Dr. Freud, Poulantzas, La Pensée
Sauvage ou Richard Rorty já é esforço bastante
para essa gente, que morreria de congestão cerebral após
meia página de Zubiri ou das Investigações Lógicas.
7. Em História, acredito na relatividade
do progresso e acho que todo progresso se paga com perdas que nem
sempre valem a pena. É claro que aprecio os computadores e os direitos
constitucionais, mas penso nos milhões de vidas humanas que foram
sacrificadas no altar do progresso e me pergunto se nós, sobreviventes,
não saímos diminuídos moralmente pelos próprios
benefícios que recebemos2.
Um índio, que anda pelado no meio do Xingu, não tem Internet
mas não carrega, nas costas, o peso de tantos pecados históricos.
O progresso, sem dúvida, é vantajoso. Mas não tem
a dignidade de um genuíno ideal moral. É apenas uma conveniência
prática, e quando procura se enfeitar com uma ideologia autoglorificadora,
com as pompas de uma utopia futurista, sobretudo "científica",
aí, meus filhos, é que ele se encarna num Robespierre, num
Lênin, num Hitler, num Mao, num desses monstros que os séculos
antigos não poderiam sequer imaginar. Gosto do progresso, não
nego. Mas não sou seu entusiasta e não sacrificaria, por
ele, a vida de um cabrito. O progresso tanto mais vale quanto menos custa.
8. Em todos os domínios e circunstâncias,
sou contra o governo mundial. Ninguém deve governar o mundo,
senão Deus. A ONU, a Unesco, o Banco Mundial, as grandes corporações
multinacionais, a Internacional Socialista e todas as entidades do gênero
são para mim a encarnação mesma da megalomania e
do desejo ilimitado de poder. Isso não quer dizer que os Estados
nacionais sejam anjinhos, pois, como já informava a Bíblia,
"os anjos das nações são demônios". Quer dizer
apenas que o chefe mundial dos demônios é muito pior do que
todos eles somados.
Que as pessoas acostumadas a identificar globalização
e liberalismo não vejam aí contradição alguma.
A unificação política e administrativa do mundo não
beneficiará o liberalismo, mas o extinguirá para sempre,
instituindo a "Terceira Via". Que é a Terceira Via? É aquela
síntese de capitalismo e socialismo que, resguardando a liberdade
de movimento para as grandes empresas que apoiam o governo, planeja, controla
e determina tudo o mais. Essa síntese não é nova.
Surgiu na década de 20 e se chama fascismo. Naquela época
o fascismo era coisa de escala nacional. Hoje querem fazer um fascismo
mundial e, para disfarçar, fazem campanhas alarmistas contra os
remanescentes do fascismo old style, como Le Pen e o Dr. Enéias,
os mais autênticos bois-de-piranha da boiada universal. Para enfrentar
o governo mundial é preciso criar um novo nacionalismo, liberal,
democrático, inteligente, capaz de tomar parte no jogo da globalização
sem deixar que transformem nosso país numa província ou
numa colônia de férias para turistas sexuais. E para isso
é preciso resistir ao maquiavélico jogo duplo que, de um
lado, exaltando falsamente o liberalismo, tudo submete a um planejamento
global e, de outro, incentivando maliciosamente reivindicações
socialistas malucas e toda sorte de ressentimentos doentios, divide o
povo, desorienta os intelectuais, debilita o Estado brasileiro e nos deixa,
a todos, à mercê do poder multinacional.
Foi para atender aos ditames dessa minha ideologia compósita,
segundo as várias exigências que me parecessem mais razoáveis
no momento e na situação, que já tive a ocasião
de votar em Lula e em Roberto Campos, em Maluf e Brizola, em Ulisses Guimarães
e em Delfim Netto, em Franco Montoro e em Fernando Henrique Cardoso. Não
votei em Collor: tomei um Engove e votei no Lula. Na eleição
seguinte, não votei em Lula: tomei um Engove e votei em FHC. Mas
escolhi sempre conforme o detalhe concreto do que estivesse em discussão
e não conforme aquela linearidade rígida de quem é
"direitista" ou "esquerdista" como se torce pelo Coríntians ou
se crê em Jesus Cristo: de uma vez por todas e por toda a vida.
Pois esta coerência só se pode ter nas coisas profundas,
duráveis e do coração, e não nessa agitação
epidérmica que é a política, onde, sem aviso prévio,
de repente as pessoas, idéias e coisas se convertem em seus contrários.
23/12/98
NOTAS:
- Talvez por isso os líderes de maior coerência ideológica em bloco, na história do nosso país, foram também os mais estéreis politicamente, como Carlos Lacerda e Luís Carlos Prestes, ao passo que outros deixaram obra mais durável justamente porque se permitiram ajustes e combições "pragmáticas". Voltar
- Isso não implica a adesão a nenhuma teoria maluca da "culpa coletiva". O que digo é que nos tornamos culpados, individual e concretamente, pelos custos do progresso, na medida em que aceitamos seus benefícios levianamente, sem gratidão consciente pelas gerações que se sacrificaram por nós. Voltar
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