J R Guzzo é leitura indispensável nestes tempos sombrios da república tupiniquim. 👇
“O
que estão fazendo com Filipe Martins, assessor do ex-presidente Jair
Bolsonaro, é um puro e simples escândalo. Obviamente não é o único.
Desde que o processo legal nas ações criminais foi anulado pelos
múltiplos inquéritos fora-da-lei do ministro Alexandre de Moraes, a
desordem que se criou no sistema de Justiça brasileiro já fez quase
tudo.
Com a aprovação integral do STF, a ciência do Direito hoje
em vigor no Brasil inventou o flagrante perpétuo. Impôs a prisão
preventiva sem prazo para acabar. Suprimiu o direito dos advogados de
fazer a sustentação oral na defesa dos seus clientes. Permite, na
prática, aplicar a pena de prisão sem julgamento do réu. Opera a “maior
vara penal do mundo” na corte suprema de Justiça do país. Abre
inquéritos policiais por tempo ilimitado e sujeitos à prorrogação
eterna; o mais velho já tem cinco anos inteiros de vida. Nega o direito a
tratamento médico de urgência para os presos nos cárceres do STF – e
por aí se vai. No caso de Filipe Martins, o ministro Moraes está
introduzindo no Direito a doutrina da inocência impossível.
Por
esta nova visão do Direito Penal e dos códigos de processo, inédita no
mundo civilizado, não só foi invertido o ônus da prova – é o acusado
quem tem de provar a própria inocência, e não o acusador quem tem de
provar a culpa. No “novo normal” da Justiça brasileira, mesmo provando
que é inocente da acusação específica feita contra ele, o acusado
continua preso.
Só são consideradas pelo STF provas que
incriminem o cidadão, e se estas provas não aparecem depois de quatro
meses de investigação, problema dele: a Polícia Federal continua
procurando a culpa, e o infeliz continua na cadeia. Martins, suspeito de
participar num golpe que seria dado por Bolsonaro e até hoje permanece
do mundo da imaginação, foi preso em fevereiro sob a acusação de ter
viajado para os Estados Unidos no dia 30 de dezembro de 2023, junto com o
ex-presidente.
Não se sabe que crime é esse – sobretudo quando
se leva em consideração que o próprio Bolsonaro, que realmente viajou,
não é acusado de ter feito a viagem. Mas isso é até o de menos. O
complicado, mesmo, é que Martins provou, contraprovou e provou de novo
que não viajou para os Estados Unidos nesse dia 30, nem com o ex-chefe e
nem com ninguém.
Num grande dos grandes clássicos em matéria de
acusação desmentida pelos fatos, Martins já provou fisicamente, com
recibos do Uber e da Latam, que estava em Brasília no dia 30, quando é
acusado pela PF de ter ido para os Estados Unidos, e em Curitiba no dia
seguinte – onde não poderia estar se tivesse viajado para a Flórida na
véspera. Mais: o Departamento de Imigração dos Estados Unidos informou
que Martins não entrou no território americano na data em que a polícia e
Moraes suspeitam que ele foi para lá.
Ou seja, de um lado as
autoridades brasileiras não têm nenhuma prova da acusação que fazem e,
do outro lado, o acusado apresenta provas materiais de que a acusação é
falsa. Mas nada disso muda coisa nenhuma. O assessor do ex-presidente
faz parte de um novo tipo de cidadão criado no Brasil pelo STF: o
“perpetrador de atentado contra a democracia”, ao qual não se aplicam o
Código de Processo Penal nem os direitos civis estabelecidos na
Constituição Federal.
Como os apátridas, que não têm a proteção
da nacionalidade, os incluídos nos inquéritos do ministro Moraes não têm
a proteção das leis em vigor no país. É o “enfrentamento” dos atos
contra a democracia, segundo a nova ordem jurídica do STF.
https://gazetadopovo.com.br/vozes/jr-guzzo
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