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domingo, 29 de setembro de 2013

PODER ABSOLUTO - A KGB AINDA AMEAÇA O MUNDO


A última vez em que falei com Alexander foi por telefone, em 8 de novembro de 2006. Por volta das 5 horas da manhã, horário de Boston, recebi um telefonema do Novaya Gazeta de Moscou, pedindo que comentasse a informação, recém-chegada, de que Alexander fora envenenado. Pedi que voltassem a me chamar mais tarde e disquei para o celular de Alexander. Àquela altura, ele já estava num hospital em Londres. Disse-me que havia perdido cerca de 15 quilos e que seu corpo recusava alimentos ou líquidos. Mas sua voz estava bem forte, e conversamos por pelo menos quinze a vinte minutos, talvez mais. 

Naquele dia, Alexander ainda achava que conseguiria sobreviver à tentativa de assassinato. Tinha conhecimento de que havia sido envenenado; sabia que fora obra do Serviço Federal de Segurança (FSB - agência russa de serviços de informação que sucedeu ao KGB para assuntos internos) da Rússia e estava convencido de que a ordem partira do presidente Vladimir Putin. Mas também estava certo de que não morreria e de que o pior já havia passado. Não lhe fiz muitas perguntas, supondo que estivesse debilitado demais para analisar a situação e esclarecer minhas dúvidas. "Dentro de poucos dias estarei em casa", disse-me ele. "Poderemos voltar a conversar." 

No dia 23 de novembro, Alexander Litvinenko morreu. Ele havia chegado ao posto de tenente-coronel da unidade especial de combate ao crime organizado do Serviço Federal de Segurança. Era sua profissão. Era sua vida.

Eu o conhecia desde 1998. Foi um período muito difícil para ele. Recebera uma árdua incumbência de seus superiores e, pela primeira vez na vida, não sabia o que fazer. A ordem era matar um judeu russo riquíssimo que acumulara muito dinheiro durante a era Yeltsin. Seu nome era Boris Berezovsky, na época funcionário do governo: secretário-executivo da Comunidade de Estados Independentes. 

Alexander tomou sua decisão. Procurou Berezovsky e o inteirou da ordem. Denunciou o caso numa entrevista coletiva, afirmando que generais do alto comando do FSB estavam indo de encontro à lei, dando ordens ilegais a seus subordinados. Foi o fim da carreira de Alexander no FSB, então comandado por Vladimir Putin. Ele foi demitido. Eu o conheci no dia em que se preparava para essa polêmica entrevista coletiva. Alexander era um homem cheio de energia. Atleta, não fumava nem bebia — coisa muito rara para um russo. Nós conversamos muito. Eu acabava de chegar a Moscou, onde não vivia desde 1978 (quando emigrei para os Estados Unidos). Tudo era novo para mim, e eu estava disposto a ouvir. Ele passou várias horas contando-me histórias de sua vida. Muitas eram apavorantes, pois ele trabalhava para o poderoso FSB e levava uma vida muito difícil. Certas histórias não me agradavam nem um pouquinho: histórias de atrocidades do exército russo na Chechênia, falando de chechenos queimados ou enterrados vivos, com descrições detalhadas de torturas. 

Ele sabia que, mais cedo ou mais tarde, seria punido por sua "traição" naquela entrevista coletiva, e que nem mesmo o rico e influente Boris Berezovsky poderia ajudá-lo. E estava certo. Em 1999, Alexander foi detido e encarcerado por um "crime" fictício que teria cometido anos antes, segundo a alegação do governo. Acabou inocentado e libertado. Mas passou muitos meses na prisão. 

Quando ele foi libertado em 2000, eu já havia deixado a Rússia e o Sr. Putin já se tornara presidente. Eu não gostei do que Putin estava fazendo na Rússia já a partir do início do seu mandato, quando dissolveu a câmara alta do Parlamento, restabeleceu o antigo hino soviético e promoveu a altos cargos governamentais seus antigos amigos e colegas do FSB. Lembro-me sempre de uma de minhas primeiras conversas com Alexander, no escritório de Boris Berezovsky em Moscou. Alexander disse que, se Putin chegasse ao poder, promoveria expurgos. Muita gente seria morta ou detida. "Sinto que é o que ele vai fazer. Também vai nos matar a todos. Podem acreditar em mim. Eu sei o que estou dizendo." Isto ocorreu provavelmente em janeiro de 2000 (Putin, que estava no cargo, interinamente, desde dezembro, seria eleito presidente em maio). Como Alexander podia saber que seria detido? Como percebeu tão cedo as intenções de Putin, quando outros ainda o consideravam um moderno líder democrático? 

No início de 2000, eu estava envolvido em meu novo estudo, investigando as explosões ocorridas em setembro de 1999 em prédios residenciais de toda a Rússia, que haviam causado a morte de mais de 300 pessoas. Foi o maior atentado terrorista jamais cometido na Rússia.

Cheguei à conclusão de que esses atentados haviam sido promovidos pelo serviço especial russo, mas atribuídos aos chechenos para justificar o início da segunda guerra na Chechênia (que efetivamente começou pouco depois dos atentados, em 23 de setembro de 1999). Mas havia muitas coisas que eu não sabia nem entendia. Eu precisava de Alexander. Decidi então pegar um avião para Moscou para encontrá-lo e pedir sua ajuda. Conversamos a noite inteira. Ele me disse que algo muito semelhante às explosões de 1999 ocorrera em Moscou em 1996, antes das eleições presidenciais anteriores. "Descubra tudo o que puder sobre Max Lazovsky. Ele era agente do FSB e foi incumbido da campanha terrorista de 1996. Se conseguir descobrir como Lazovsky atuava, como foi montada sua organização, poderá entender tudo. Mas tome cuidado, Yuri. Se alguém descobrir que você está investigando Lazovsky, você será morto, pois logo entenderão que você está interessado em 1999, e não em 1996. Mas a chave de tudo é Lazovsky e seu sistema."

Deixei Moscou na manhã seguinte, levando comigo anotações que se transformaram no esqueleto de nosso livro A explosão da Rússia: Uma conspiração para restabelecer o terror do KGB. Foi minha última viagem à Rússia. Naquela mesma noite em Moscou, também falamos da fuga de Alexander. Ele havia sido libertado da prisão, mas era vigiado pelo FSB 24 horas por dia. Durante o dia, era seguido por dois carros, com três pessoas em cada um. À noite, havia sempre um carro de plantão. Pude vê-lo com meus próprios olhos quando o visitei, Ele não tinha futuro na Rússia, e sua próxima detenção era apenas uma questão de tempo. Ele não era homem de ficar esperando uma nova detenção, Decidiu fugir da Rússia e conseguiu atravessar a fronteira. Sua mulher, Marina, e seu filho, Anatoly, tinham passaportes estrangeiros e saíram da Rússia legalmente, para passar as férias na Espanha. A essa altura, Litvinenko já chegara à Turquia, o único país no qual podia entrar sem necessidade de visto. Lá, esperou pela família, que chegou no dia seguinte. Uma semana depois, os três desembarcaram no aeroporto londrino de Heathrow, pedindo asilo político. Chegara ao fim a grande fuga. Era o dia 1' de novembro de 2000. 

Escrevemos a primeira versão do nosso livro no ano seguinte. Vários capítulos de "A explosão da Rússia" foram publicados numa edição especial do jornal russo Novaya Gazeta, e o livro também serviu de base para o documentário "O Assassinato da Rússia". Para nossa grande decepção, tanto o filme quanto o livro foram proibidos na Rússia. Com o confisco de uma partida

e 5.000 exemplares de 'A explosão da Rússia" entre a Letônia e Moscou, a primeira edição foi enterrada. Os russos que pudessem ou desejassem encontravam o texto na internet, mas a versão impressa permaneceu inacessível.  

Desde então, foram mortas várias pessoas que nos ajudaram com o livro ou no contrabando para Moscou de fitas do documentário proibido. Vladimir Golovlyov e Serguei Yushenkov, membros do parlamento russo (a Duma), nos ajudavam a transportar as fitas proibidas para Moscou e a organizar exibições públicas do filme. Ambos foram mortos a tiros. Golovlyov foi abatido em 21 de agosto de 2002, e Yushenkov, em 17 de abril de 2003. Yuri Schekochikhin, também membro do parlamento russo e vice-editor-chefe do Novaya Jazera, onde trabalhava Anna Politkovskaya, assassinada recentemente, foi envenenado. Ficou em estado de coma por algum tempo e morreu em 3 de julho de 2003. Eu o conhecera em Zagreb, na Croácia, em junho de 2001, e lhe havia entregado um manuscrito de "A explosão da Rússia", para publicação em seu jornal.  

Apesar desses assassinatos, demos prosseguimento ao nosso trabalho e coletamos mais material para o livro. Fizemos o máximo que pudemos. Tentamos permanecer vivos e em segurança — Alexander na Grã-Bretanha e eu nos Estados Unidos. Mas não conseguimos. Perdi o meu colega, seis anos depois de seu desembarque em Londres. No dia 1° de novembro de 2006, ele foi envenenado, e este prefácio é assinado apenas por mim.


Yuri Felátinsky 12 de dezembro de 2006




A ÁRVORE GENEALÓGICA DO Serviço Federal de Segurança da Federação Russa (FSB FR) dispensa comentários. Desde os primeiros anos do poder soviético, os organismos de punição criados pelo Partido Comunista mostraram-se implacáveis e impiedosos. Desde o início, os atos dos indivíduos que trabalhavam nesses departamentos passavam ao largo dos valores e princípios da humanidade comum. A partir da revolução de 1917, a polícia política da Rússia soviética (mais tarde a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, URSS) funcionou como um mecanismo inexorável de aniquilamento de milhões de pessoas; na verdade, essas estruturas jamais tiveram outras funções, pois o governo nunca lhes atribuiu qualquer outra atividade prática ou política, nem mesmo em seus períodos mais liberais. Nenhum outro país civilizado jamais teve algo comparável com as agências de segurança de Estado da URSS. Exceto no caso da Gestapo na Alemanha nazista, nunca houve uma outra polícia política que dispusesse de suas próprias divisões operacionais e investigativas ou seus centros de detenção, como por exemplo a prisão do FSB em Lefortovo.  

Os acontecimentos de agosto de 1991 — quando uma onda de indignação popular derrubou o sistema comunista — demonstraram claramente que a liberalização das estruturas políticas da Rússia inevitavelmente levaria ao enfraquecimento e talvez até à proibição do KGB (Comitê de Segurança do Estado). O pânico entre os dirigentes das agências coercitivas do Estado neste período traduziu-se em numerosos e não raro incompreensíveis casos de desmantelamento de antigas agências de serviços especiais e criação de novas. No dia 6 de maio de 1991, era criado o Comitê de Segurança de Estado da República da Rússia, tendo V. V. Ivanenko na presidência, paralelamente ao KGB de toda a federação, nos termos do protocolo assinado pelo presidente russo, Boris Yeltsin, e o presidente do KGB da URSS, V. A. Kriuchkov. No dia 26 de novembro, o KGB da Rússia foi transformado em Agência de Segurança Federal (AFB). Uma semana depois, em 3 de dezembro, o presidente URSS, Mikhail Gorbachev, assinava um decreto "Da Reorganização das Agências de Segurança do Estado". Com base nesta lei, seria criado um novo Serviço Interdepartamental de Segurança (MSB) da URSS, a partir da estrutura do KGB, que era abolido.  

Simultaneamente, o velho KGB, como uma hidra de múltiplas cabeças, dividia-se em quatro novas estruturas. O Primeiro Departamento (central), que cuidava da inteligência externa, foi reconstituído separadamente no Serviço de Inteligência Central, mais tarde batizado de Serviço de Inteligência Externa (SVR). O Oitavo e o Décimo Sexto Departamentos (encarregados das comunicações governamentais, codificações e reconhecimento eletrônico) foram transformados no Comitê de Comunicações Governamentais (a futura Agência Federal de Informação e Comunicações Governamentais) . serviço da guarda de fronteira transformou-se no Serviço Federal de Fronteiras (FPS). O antigo Nono Departamento do KGB transformou-se em Departamento da Guarda Pessoal do Gabinete do Presidente da RSFSR.* O antigo Décimo Quinto Departamento passou a ser o Serviço de Segurança Governamental e Guarda Pessoal da RSFSR (República Socialista Federativa Soviética da Rússia, nome oficial da Rússia na era soviética). Estas duas últimas estruturas seriam posteriormente transformadas no Serviço de Segurança do Presidente (SBP) e no Serviço Federal de Guarda Pessoal (FSO). Um outro serviço especial supersecreto também foi separado do antigo Décimo Quinto Departamento do KGB: o Departamento Presidencial Central de Programas Especiais (Gusp). 

No dia 21 de janeiro de 1992, Yeltsin assinou um decreto autorizando a criação de um Ministério da Segurança (MB), a partir das estruturas da AFB e do MSB. Ao mesmo tempo, era constituído um Ministério da Segurança e    do Interior, que, no entanto, logo seria dissolvido. Em dezembro de 1993, o MB era, por sua vez, rebatizado de Serviço Federal de Contra-inteligência (FSK), e em 3 de abril de 1995, Yeltsin assinou o decreto "Da Formação de um Serviço Federal de Segurança na Federação Russa", pelo qual o FSK era transformado no FSB.  Esta longa seqüência de atos de reestruturação e mudanças de nomes destinava-se a proteger a estrutura organizacional das agências de segurança do Estado, ainda que de forma descentralizada, frente aos ataques dos democratas, juntamente com a estrutura para preservar o pessoal, os arquivos e os agentes secretos.

Um importante papel no empenho de salvar o KGB da destruição foi desempenhado por Ievgueni Savostianov (em Moscou) e Serguei Stepashin (em Leningrado), ambos com fama de democratas, que foram nomeados para reformar e controlar o KGB. Na verdade, contudo, os dois foram primeiro infiltrados no movimento democrático pelas agências de segurança do Estado e só mais tarde foram designados para cargos de direção nos novos serviços secretos, para impedir a destruição do KGB pelos democratas.  

Embora, com o passar dos anos, muitos funcionários que trabalhavam em tempo integral ou como prestadores de serviço no KGB-MB-FSK-FSB tenham se transferido para o mundo dos negócios ou da política, Savostianov e Stepashin conseguiram preservar a estrutura global. Além disso, o KGB estivera anteriormente sob o controle político do Partido Comunista, que de certa maneira funcionava como um freio às atividades das agências especiais, pois nenhuma operação importante era possível sem a autorização do Politburo. Depois de 1991, o MB-FSK-FSB começou a operar na Rússia de forma absolutamente independente e sem controles, à parte o controle exercido pelo FSB sobre seus próprios agentes. Sua disseminada estrutura predatória já não era mais contida nos limites da ideologia ou da lei. 

Depois do período de confusão resultante dos acontecimentos de agosto de 1991 e da equivocada expectativa de que os agentes do antigo KGB cairiam no mesmo ostracismo que o Partido Comunista, os serviços secretos deram-se conta de que a nova era, livre da ideologia comunista e do controle do partido, oferecia certas vantagens. O antigo KGB pôde lançar mão de seus amplos recursos de pessoal (tanto oficiais quanto extra-oficiais) para posicionar seus agentes em praticamente todas as esferas de atividade no vasto território do Estado russo. 

Antigos elementos de destaque no KGB começaram a aparecer nos mais altos escalões do poder, não raro sem ser notados pelos não iniciados: os primeiros eram agentes secretos, mas logo viriam também antigos funcionários ou funcionários ainda em serviço. Na linha de apoio a Yeltsin, desde o início dos acontecimentos de agosto de 1991, estava Alexander Vasilievich Korjakov, ex-guarda-costas de Yuri Andropov, presidente do KGB e secretário-geral do Partido Comunista. O coronel aposentado do GRU Bogomazov chefiava o serviço secreto do Grupo Mikom, e o vice-presidente do Grupo Financeiro e Industrial era N. Nikolaev, que passara vinte anos no KGB e chegara a trabalhar sob as ordens de Korjakov.

Filipe Denisovich Bobkov, general de quatro estrelas e primeiro vice-presidente do KGB da URSS, que na era soviética fora por muito tempo o chefe da chamada "quinta linha" do KGB (investigação política), foi empregado pelo magnata Vladimir Gusinsky. A "quinta linha" contabilizava entre seus maiores êxitos a expulsão do país de Alexander Isaevich Soljenitsyn e Vladimir Konstantinovich Bukovsky, assim como a detenção, durante muitos anos, daqueles que pensavam e diziam o que consideravam certo e não o que o partido ordenava que pensassem e dissessem. Anatoly Sobchak, prefeito de Leningrado (São Petersburgo) e destacado líder do movimento reformista na Rússia, era apoiado por outro homem do KGB, Vladimir Putin. Nas palavras do próprio Sobchak, isto significava que "o KGB controla São Petersburgo". 

A maneira como todo este esquema foi montado veio a ser detalhadamente descrita pelo diretor do Instituto Italiano de Política e Economia Internacional, Marco Giaconi, que ensina em Zurique. "As tentativas do KGB de assumir o controle das atividades financeiras de várias empresas seguem sempre o mesmo padrão. A primeira etapa tem início quando gângsteres tentam vender proteção ou usurpar direitos. Em seguida, agentes especiais dirigem-se a essas empresas para oferecer ajuda na solução de seus problemas. A partir desse momento, a empresa perde a independência para sempre. Inicialmente, uma empresa que cai na armadilha do KGB encontra dificuldades para conseguir crédito, podendo inclusive sofrer graves reveses financeiros. Posteriormente, pode receber concessões comerciar em setores como alumínio, zinco, alimentos, celulose e madeira, recebendo um forte estímulo para seu próprio desenvolvimento. É nesse estágio que vem a ser infiltrada por antigos agentes do KGB, tornando-se também uma nova fonte de renda para a organização." 

O período entre 1991 e 1996 demonstrou, contudo, que as empresas russas, apesar de violentamente saqueadas pelos serviços de segurança do Estado (que agiam abertamente, mas também através do crime organizado, sob o controle global dos serviços secretos), conseguiram em breve período transformar-se numa força política independente que de forma alguma estava permanentemente sob o controle do FSB. Depois que em 1993 Yeltsin conseguiu acabar com o parlamento pró-comunista, que tentava brecar as reformas liberais na Rússia, os dirigentes do antigo KGB, agora no comando do MB e do FSK de Yeltsin, decidiram desestabilizar e comprometer seu regime e suas reformas exacerbando deliberadamente a situação de criminalidade na Rússia e fomentando conflitos nacionais, sobretudo no norte do Cáucaso, o elo mais frágil do Estado multinacional russo.

 Simultaneamente, era lançada nos meios de comunicação uma vigorosa campanha no sentido de que o empobrecimento da população e o aumento das atividades criminosas e nacionalistas resultavam da democratização política, e a única maneira de evitar esses excessos estaria na rejeição, pela Rússia, das reformas democráticas e dos modelos ocidentais, passando o país a seguir seu próprio caminho de desenvolvimento, baseado na ordem pública e na prosperidade geral. O que essa propaganda realmente promovia era uma ditadura semelhante ao modelo nazista. Dentre todos os ditadores, grandes e pequenos, esclarecidos e sanguinários, foi escolhido como modelo o mais apresentável e menos óbvio, o general chileno Augusto Pinochet. Por algum motivo se acreditava que se surgisse uma ditadura na Rússia, não seria pior que a do Chile de Pinochet. A experiência histórica demonstra, contudo, que a Rússia sempre escolhe a pior alternativa possível. Até 1996, os serviços de segurança do Estado lutavam contra os reformistas democráticos, pois consideravam que a pior

ameaça era configurada numa ideologia democrática, que exigia a imediata aplicação de radicais reformas econômicas e políticas pró-ocidentais baseadas nos princípios da economia de mercado, assim como a integração política e econômica da Rússia à comunidade dos países civilizados. Após a vitória de Yeltsin na eleição presidencial de 1996, quando o mundo dos negócios da Rússia mostrou pela primeira vez sua força política ao rejeitar o cancelamento das eleições democráticas e o estabelecimento de um estado de emergência (exigências feitas pela facção pró-ditadura, por homens como A.  Korjakov, o chefe do FSO, M. I. Barsukov, e outros da mesma laia) e, soretudo, obteve a vitória de seu próprio candidato, os serviços de segurança o Estado passaram a ter como alvo principal de sua ofensiva a elite russa de negócios. A vitória de Yeltsin nas urnas em 1996 foi seguida pelo surgimento, primeira vista inexplicável, de campanhas de propaganda para denegrir a reputação dos principais empresários russos. Na vanguarda dessas campanhas estavam alguns rostos bem conhecidos das agências de segurança. 

A língua russa incorporou uma nova palavra, "oligarca", embora fosse evidente que nem mesmo o mais rico indivíduo do país podia ser considerado um oligarca no sentido literal, pois carecia do componente básico da oligarquia: poder. Tal como anteriormente, o verdadeiro poder continuava nas mãos dos serviços secretos. 

Gradualmente, com a ajuda de jornalistas que também eram agentes do FSB e do SBP e de todo um exército de escribas inescrupulosos sedentos de sensacionalismo, os poucos "oligarcas" do mundo dos negócios da Rússia passaram a ser chamados de ladrões, escroques e até assassinos. Enquanto isso, os criminosos realmente perigosos, assenhoreando-se de um verdadeiro poder oligárquico e embolsando bilhões em dinheiro jamais registrado em contabilidade regular, estavam aboletados em suas mesas de diretores nas agências coercitivas do Estado russo: o FSB, o SBP, o FSO, o SVR, o Departamento Central de Inteligência (GRU), a Promotoria Geral, o Ministério da Defesa (MO), o Ministério do Interior (MVD), a alfândega, a polícia fiscal, assim por diante. 

Estes eram os verdadeiros oligarcas, os cardeais cinzentos e os gerentes as sombras no mundo dos negócios russos e na vida política do país. Detinham o verdadeiro poder, ilimitado e sem controles. Protegidos pelo fato de pertencerem aos serviços de segurança, eram verdadeiramente intocáveis. Abusavam rotineiramente das prerrogativas de seus cargos, levando propinas, roubando, acumulando capital e envolvendo seus subordinados em atividades criminosas.

Este livro tenta mostrar que os problemas mais fundamentais da Rússia moderna não decorrem das reformas radicais do período liberal dos mandatos de Yeltsin como presidente, mas sim da resistência declarada ou clandestina oposta a essas reformas pelos serviços secretos russos. Foram eles que desencadearam a primeira e a segunda guerras na Chechênia, para desviar a Rússia do rumo da democracia, em direção à ditadura, ao militarismo e ao chauvinismo. Foram eles que organizaram uma série de atentados terroristas em Moscou e outras cidades russas, como parte de suas operações destinadas a criar as condições para essas duas guerras. 

As explosões de setembro de 1999, e especialmente o atentado terrorista frustrado em Ryazan no dia 23 de setembro, constituem o tema central deste livro. Essas explosões constituem a mais clara pista para acompanhar as táticas e a ESTRATÉGIA DAS AGÉNCIAS RUSSAS DE SEGURANÇA DE ESTADO, CUJO OBJETIVO FINAL É O PODER ABSOLUTO.

Este livro trata da tragédia que se abateu sobre todos nós, trata de oportunidades e vidas perdidas. Destina-se àqueles que, reconhecendo o que aconteceu, não têm medo de influir no futuro. 

Depois da publicação de trechos do livro no Novaya Gazeta e do lançamento da edição americana em Nova York, fomos insistentemente questionados sobre nossas fontes. Gostaríamos de assegurar aos leitores que o livro não contém fatos inventados nem afirmaçõe sem fundamento. Concluímos, no entanto, que, em vista da atual situação na Rússia — estando ativos na liderança do país muitos funcionários governamentais que suspeitamos terem estado envolvidos na organização, execução e aprovação das atrocidades terroristas de setembro de 1999 —, seria prematuro dar a público os nomes de nossas fontes. Ao mesmo tempo, declaramos que essas fontes seriam imediatamente reveladas a qualquer comissão russa ou internacional constituída para investigar as atrocidades terroristas de setembro de 1999. Nossa posição mantém-se inalterada: todos os documentos utilizados na redação deste livro serão fornecidos àqueles que se empenharem de forma imparcial em descobrir o que aconteceu.
Extraído do livro abaixo:

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