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domingo, 28 de setembro de 2014

A DESORDEM, A INVENÇÃO DE SISTEMAS (FILOSÓFICOS, POLÍTICOS, IDEOLÓGICOS) E A "MORTE" DE DEUS


TEXTO DE ERIC VOEGELIN

A realidade da ordem não é descoberta minha. Refiro-me à ordem da realidade, conhecida pelo gênero humano desde que temos os primeiros registros escritos, e há ainda mais tempo com as pesquisas arqueológicas que nos desvelam símbolos gravados em monumentos já no Paleolítico. Ordem é a estrutura da realidade como experienciada pelo homem, bem como a sintonia entre o homem e uma ordem não fabricada por ele, isto é, a ordem cósmica. Esses insights sobre a estrutura e o problema do ajuste – ou, como disse, da sintonia – já estão presentes em documentos literários egípcios do terceiro milênio a.C. Do mesmo milênio egípcio datam as expressões literárias da experiência da desordem. Um exemplo destas últimas é a emergência de um ceticismo radical em relação à ordem cósmica, em um momento marcado pela experiência cotidiana de uma sanguinária desordem tomando conta das ruas. Ilustra-o o famoso Diálogo de um suicida com sua alma, que analisei em meu estudo "Immortality: Experiente and Symbol" [Imortalidade: experiência e símbolo]. Nessas experiências de desordem social e cósmica, a ordem reduz-se ao âmbito do indivíduo, e talvez nem mesmo aí possa ser encontrada. Essas experiências produzem estados extremos de alienação, nos quais a morte pode aparecer como a libertação de uma prisão ou como a convalescença da doença mortal que é a vida. Desde o terceiro milênio a.C., praticamente nada mudou nesses simbolismos fundamentais da alienação.

A categorização dessas experiências, contudo, é bastante tardia. Até onde sei, o conceito de alienação (allotriosis) foi criado pelos estóicos e muito usado, mais tarde, por Plotino. Na psicopatologia estóica, allotriosis é um estado de retirada do próprio eu, o qual se constitui pela tensão entre o homem e o plano divino da existência. Uma vez que, tanto na filosofia clássica quanto na estóica, o plano divino da existência é o logos ou fonte de ordem neste mundo, a retirada do eu, constituído por essa força ordenadora, é um recuo da razão na existência. O resultado, neste caso, é o uso da razão, que o homem evidentemente continua a possuir, para justificar sua existência no estado de alienação. Foi até esse ponto que chegaram os estóicos na psicopatologia da alienação.

As categorias estóicas podem ser aplicadas a fenômenos ideológicos modernos, cuja base experiencial para compreender a realidade é o estado de alienação, e já não mais a tensão entre o humano e o divino. Sistemas como o de Hegel, por exemplo, são sistematizações de um estado de alienação; é inevitável que culminem na morte de Deus, não porque Deus tenha morrido, mas porque houve uma rejeição da razão divina na revolta egofânica. Não é possível se revoltar contra Deus sem se revoltar contra a razão e vice-versa. Essas interpretações, elaboradas a partir de uma existência corrompida e não mais aberta à realidade do plano divino, precisam afastar a experiência desse plano de qualquer consideração sobre a realidade. Desse procedimento, resultam fenômenos típicos.
Entre eles, o mais importante é a construção de sistemas. Fenômeno eminentemente moderno, o sistema teve sua modernidade encoberta pela opinião dominante de que ele era a forma por excelência do filosofar. Essa visão se enraizou tanto que acabou por eclipsar a realidade da filosofia não sistemática.


Fala-se, rotunda e irrefletidamente, em um sistema platônico, aristotélico ou tomista, a despeito do fato de que esses filósofos estremeceriam de horror diante da idéia de que sua investigação empírica da realidade pudesse resultar em um sistema. Se algo esteve sempre claro para um pensador como Platão, que sabia distinguir entre as experiências do ser e as do não-ser e admitia a existência de ambos os tipos, era que, para o bem ou para o mal, a realidade não era um sistema. Se o sujeito constrói um sistema, a falsificação da realidade é, portanto, inevitável.

Um tema de pesquisa que deveria ser valorizado no campo da política moderna é a elaboração de um inventário pormenorizado das falsificações sistemáticas; elas são manifestações importantíssimas da desordem no mundo contemporâneo. Mas é evidente que há uma resistência descomunal à realização dessas pesquisas, posto que quem deveria empreendê-las é justamente quem precisaria, em primeiro lugar, reconhecer em seu próprio pensamento sistemático uma falsificação da realidade, e descartá-lo. Ainda assim, tão vigorosa é a recente expansão do conhecimento histórico, seja no tocante à política, seja no que diz respeito aos fenômenos intelectuais e espirituais, que não é absurdo prever (desconsiderando a possibilidade de catástrofes sociais de maior envergadura que alçariam ao poder uma seita totalitária sistematizante) que os dias dos sistematizadores de plantão e suas falsificações desestruturantes estão contados.



IDEOLOGIA, MENTIRA E TOTALITARISMO - ERIC VOEGELIN 
http://conspiratio3.blogspot.com.br/2014/09/ideologia-e-totalitarismo-eric-voegelin.html

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Meditação e consciência
Olavo de Carvalho
http://www.midiasemmascara.org/artigos/cultura/15470-2014-10-05-01-22-03.html

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"O bolchevismo não é meramente uma doutrina política, é também uma religião, com dogmas elaborados e escrituras inspiradas. Quando Lênin deseja provar uma suposição, ele o faz citando, sempre que possível, textos de Marx e Engels. Um comunista completamente amadurecido não é apenas um homem que acredita que a terra e o capital devem pertencer a todos, e seus produtos distribuídos tão equitativamente quanto possível. É também um homem que mantém certo número de crenças dogmáticas, tal como o materialismo filosófico, por exemplo, que podem ser verdadeiras, mas não podem ser conhecidas com certeza por um espírito científico. Esse hábito, de ter certeza partidária sobre assuntos passíveis de dúvidas é um dos que, desde a Renascença, têm surgido gradualmente no mundo, afogando aquela tendência ao ceticismo construtivo e proveitoso que constitui a atitude científica." (Bertrand Russell)



 

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